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Devemos parar de admirar Paul Gauguin?

Numa época de sensibilidade extrema às questões de gênero, raça e colonialismo, exposição de obras do pintor impulsiona questionamentos

Por Farah Nayeri
Atualização:

LONDRES – “Está na hora de pararmos de vez de olhar Gauguin?” Esta é a pergunta espantosa que os visitantes ouvem no guia áudio, circulando pela mostra Gauguin Portraits na National Gallery, em Londres. A mostra, que irá até 26 de janeiro, exibe autorretratos do pintor, retratos de amigos, de colegas artistas, dos filhos que ele teve e das jovens com as quais viveu no Taiti.

O retrato que se destaca na exposição é Tehamana tem muitos pais (1893), da amante adolescente de Gauguin, segurando um leque. O artista “manteve frequentemente relações sexuais com adolescentes, ‘casou’ com duas delas e teve filhos”, diz  o texto na parede. “Indubitavelmente, Gauguin explorou sua posição de ocidental privilegiado para aproveitar da liberdade sexual de que desfrutava”.

'Tehamana tem muitos pais', retrato da amante menor de idade de Paul Foto: Instituto de Arte de Chicago

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Nascido em Paris, Gauguin passou os primeiros anos de sua vida no Peru, antes de  regressar à França. Começou a pintar com pouco mais de 20 anos e viajou para Taiti de barco em 1891. Gauguin viveu grande parte dos 12 anos restantes de sua vida no Taiti e na ilha de Hiva Oa, na Polinésia francesa.

No universo dos museus, Gauguin é um sucesso de bilheteria. Entretanto, em uma época de extrema sensibilidade às questões de gênero, raça e colonialismo, os museus estão reavaliando o seu legado.

Há cerca de vinte anos, uma mostra sobre o mesmo tema “teria sido um grande negócio principalmente sobre a inovação formal”, disse Christopher Riopelle, um dos curadores da mostra da National Gallery. Agora, tudo deve ser revisto em um contexto muito mais pormenorizado". “Não acho mais que seja suficiente dizer: ‘Bom, eles se comportavam assim naquela época’ ,” afirmou.

A mostra é uma co-produção com a National Gallery do Canadá em Ottawa, onde abriu no fim de maio. Dias antes da inauguração, a diretora do museu que havia sido nomeada pouco tempo antes, Sasha Suda decidiu editar alguns dos textos afixados ao lado dos quadros. Nove rótulos foram mudados para evitar  linguagens culturalmente insensíveis. Em outros lugares, o seu “relacionamento com uma jovem taitiana” mudou para “o seu relacionamento com uma menina taitiana de 13 ou 14 anos”.

A mostra deveria “ter tratado destas questões de uma maneira mais aberta e transparente que falasse ao público contemporâneo,”  indicou Suda em uma entrevista. Tratar dos “pontos cegos” da obra de artistas históricos “poderia tornar estes artistas mais relevantes”, acrescentou. Para outros profissionais dos museus, o reexame da vida de artistas do passado, da perspectiva do século 21, é arriscado.

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“Eu posso ter horror e sentir asco pela pessoa, mas a obra é a obra”, explicou Vicente Todoli, diretor artístico da fundação de arte Pirelli HangarBicocca de Milão. “Uma vez que um artista cria algo, isto deixa de pertencer ao artista, passa a pertencer ao mundo”.

Entretanto, Ashley Remer, uma curadora da Nova Zelândia, que em 2009 fundou a girlmuseum.org, um museu online sobre a representação de meninas na história e na cultura, insistiu que, no caso de Gauguin, as ações do homem foram tão escandalosas que ofuscaram a obra. “Ele foi um pedófilo arrogante, superestimado, paternalista, chegando a ser tosco”, afirmou.

Mesmo para os seus admiradores, Gauguin é um convite ao questionamento. “Adoro seus quadros, mas acho que ele é um tanto estranho”, comentou Kehinde Wiley, pintor afro-americano que descreveu Gauguin como um dos seus ídolos, ao ser entrevistado em 2017 em um filme da National Gallery. “A maneira como ele pinta estes corpos negros do Pacífico transmite a sensação do seu desejo. Mas como mudar a narrativa? Como mudar a maneira de olhar?”.

Para garantir que o legado artístico de Gauguin não seja manchado por seus “casamentos” com adolescentes, estes relacionamentos deveriam permanecer cobertos nas exposições, segundo Line Clausen Pedersen, curadora dinamarquesa que organizou várias mostras de Gauguin. Em cada exposição, “retira-se outra camada da proteção da história de que ele de certo modo se aproveitou”, disse. “Talvez tenha chegado o momento de arrancar mais camadas do que antes”. E acrescentou: “O que resta dizer a respeito de Gauguin é que devemos retirar toda a sujeira”. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

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