Peça de teatro reflete nova realidade depois da volta do Taleban

A peça de Sylvia Khoury, que acontece durante uma noite no Afeganistão em 2013, só se aprofundou depois de um adiamento da pandemia

PUBLICIDADE

Por Amelia Nierenberg
Atualização:

NOVA YORK - Em março de 2020, a peça Selling Kabul estava a apenas duas semanas da pré-estreia quando a indústria teatral repentinamente parou.

Da esquerda para a direita: Dario Ladani Sanchez como Taroon, Mattico David como Jawid, Francis Benhamou como Lyla e Marjan Neshat como Afiya na peça 'Selling Kabul'. Foto: Sara Krulwich/The New York Times

PUBLICIDADE

O cenário - uma modesta sala de estar na capital afegã - ficou vazio por 19 meses, apenas mais um apartamento abandonado no centro de Manhattan. Contudo, o elenco manteve contato por meio de reuniões virtuais regulares, nas quais compartilhavam suas pesquisas.

Em agosto, quando os Estados Unidos encerraram sua mais longa guerra e o Taleban assumiu o controle, as conversas mudaram. O que a peça significava agora, nesta nova realidade geopolítica? Seu dever para com os personagens havia mudado? Que memórias e frustrações o público traria agora para a apresentação?

"Conversávamos quase que diariamente sobre a situação no Afeganistão, e buscamos entender e analisar como as mudanças afetariam nossa peça", conta o diretor, Tyne Rafaeli,

Sylvia Khoury, autora da peça, também se digladiou com a nova ressonância de sua obra. Finalmente, decidiu não alterar o texto, desejando honrar o momento histórico e as experiências individuais que o geraram.

"O momento atual realmente colore certos aspectos da peça, de várias maneiras. Não mudei nada. Uma peça de teatro é uma coisa fixa, ao passo que a história continua a se desenrolar", afirmou Khoury em entrevista em vídeo depois da pré-estreia do espetáculo.

Selling Kabul se passa em 2013, quando o governo Obama iniciou o longo processo de retirada de suas tropas. Khoury escreveu a peça em 2015, depois de conversar com vários intérpretes que aguardavam vistos especiais de imigração. E como a concessão daquele tipo de visto, criado pelo Congresso para oferecer refúgio a afegãos e iraquianos que ajudaram os militares americanos, exigia uma avaliação muito rigorosa, várias pessoas ficaram durante anos em um limbo burocrático. Agora, muitos aliados e parceiros dos americanos permanecem no país, potencialmente vulneráveis a represálias do Taleban.

Publicidade

"Esse tempo que se passou revela uma profunda falha moral. Esse tempo que ia se passando, por si só, realmente escancarou nossa própria vergonha", admitiu Khoury.

"Selling Kabul" fala sobre o custo humano dos conflitos americanos no exterior. A peça não traz ao público nem reprimendas, nem catarse. Em vez disso, Khoury oferece uma análise íntima e intensa de quatro pessoas presas em uma rede de escolhas impossíveis.

"Se eu ainda roesse as unhas, já não teria nenhuma para contar a história", escreveu Alexis Soloski em sua crítica para o jornal "The New York Times".

Na peça, Taroon, que foi intérprete dos militares americanos, aguarda um visto que lhe fora prometido. Ele havia acabado de se tornar pai - o bebê nasce logo antes do início da peça - mas não pode ficar com sua esposa e filho. Ele está escondido há quatro meses no apartamento de sua irmã, Afiya, fugindo do Taleban. Mas naquela noite, seus perseguidores parecem estar cada vez mais próximos.

Taroon precisa sair de Cabul, e logo.

"Para além das manchetes, a peça se foca nos detalhes, nos pormenores intensos de como essa política externa afeta essas quatro pessoas, nesse dia, nesse apartamento", disse Rafaeli.

Contada em tempo real, a peça de 95 minutos é encenada sem intervalo. À medida que o medo se intensifica e a violência se aproxima, os quatro personagens lutam para manter segredos, e para manter uns aos outros vivos, mas também são forçados a tomar decisões que podem pôr os outros em perigo.

Publicidade

A história da peça acontece em 2013, a pandemia fez com que as coisas se tornassem mais profundas. Foto: Sara Krulwich/The New York Times

"Nenhum dos personagens é mau, e não é apenas uma situação difícil; e uma situação impossível", conta Marjan Neshat, que interpreta Afiya.

A pandemia do coronavírus também mudou o tom da peça. Em 2019, em uma temporada anterior no Festival de Teatro de Williamstown, o público precisava imaginar como seria a claustrofobia sentida por Taroon. Agora, todos já a vivenciaram. Khoury espera que os expectadores saiam da peça com a compreensão de que suas ações individuais podem afetar pessoas que nunca nem conhecerão.

"Como americanos, achávamos que bastava cuidar do nosso próprio jardim. Agora, estamos percebendo que isso está longe de ser suficiente", disse Khoury.

Ela escreveu Selling Kabul enquanto cursava a Escola de Medicina Icahn, do hospital Mount Sinai. Combinando o que ouviu em conversas com intérpretes afegãos com sua própria vivência familiar, ela pinta um retrato detalhado do mito dos EUA.

"Todas as pessoas com quem falei foram muito claras sobre querer vir para os Estados Unidos. Era mais seguro para elas", conta.

Na peça, a vizinha de Afiya, Leyla, lembra dos soldados como caras divertidos, até bonitos. Afiya - que fala inglês melhor que Taroon, apesar de ter sido expulsa da escola quando o Taleban assumiu o controle na década de 1990 - acha que os americanos não são dignos de confiança.

"Para mim, os EUA sempre nos abandonam. 'Você prometeu uma coisa que nunca vai poder cumprir. Como ousa?'", disse Neshat, explicando o ponto de vista de sua personagem.

Publicidade

E, para Taroon, o país é uma promessa. "São os EUA, vão cumprir o prometido", ele diz a Afiya. Quando Selling Kabul estreou no Festival de Teatro de Williamstown, Donald Trump era o presidente. E essa fala era engraçada. Agora, não há tantas risadas, mas a convicção de Taroon ainda causa desconforto.

"Nós não cumprimos o prometido. E é difícil admitir isso, estando deste lado do espectro político", confessa Khoury.

Consciente de que sua peça pode incentivar em alguns expectadores o desejo de ajudar, Khoury criou uma campanha para arrecadar fundos para o Projeto Internacional de Assistência aos Refugiados nos exemplares das revistas Playbill, onde há informações sobre a organização. "Não podíamos perder a oportunidade de oferecer às pessoas uma maneira de ajudar", comenta.

A dramaturga também fez o público refletir sobre sua moralidade em Power Strip, uma história sobre refugiados sírios em um campo de migrantes na Grécia, que estreou no Lincoln Center em 2019. Em Selling Kabul, seus personagens também estão prestes a abandonar quase tudo o que conhecem.

"As histórias de como deixamos nossa terra natal fazem parte de minha infância; histórias sobre ir passando de um país para outro, em circunstâncias bastante extremas", conta Khoury, que é libanesa descendente de franceses, e cuja família foi afetada pelo colonialismo e imperialismo no Oriente Médio e no Norte da África.

"Quem é você antes de partir? Quem é a pessoa que toma a decisão de partir? E na maioria das histórias que conheço, não há despedidas. É imediato. É subir no primeiro caminhão possível", acrescenta.

Enquanto o público saía do teatro depois de uma apresentação recente, uma amiga perguntou a outra: "Onde você acha que eles estão agora? O que aconteceu com eles"?

Publicidade

Para Neshat, que nasceu no Irã e se mudou para os Estados Unidos aos oito anos, é doloroso demais pensar nisso.

Sobre os excruciantes dilemas da peça, ela questiona: "Como escolher entre sua melhor amiga e seu irmão? Como se faz isso?".

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.