Por que os americanos se calam diante das atrocidades sauditas

Os EUA fingem indiferença quando seus amigos de bolsos cheios causam constrangimento

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Por Maureen Dowd
Atualização:

WASHINGTON - Jantei, certa vez, aqui em Washington com um saudita poderoso. Mais ou menos no meio da entrevista, ele colocou uma caixa de veludo retangular sobre a mesa. Dentro havia uma joia cara. Comecei a rir e expliquei que eu era uma repórter e não podia aceitar este tipo de adorno. Ele retrucou que compreendia.

Cerca de dez minutos mais tarde, percebi uma pancadinha no meu joelho, em baixo da mesa. Era a caixa, que desta vez me era oferecida de maneira mais discreta.

Da esquerda, o presidente do Egito, Abdel Fattah el-Sisi, o rei Salman da Arábia Saudita, Melania Trump e o presidente Donald J. Trump durante a inauguração de um centro contra extremistas em Riad. Foto: Saudi Press Agency Handout/European Pressphoto Agency

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Os sauditas são especialistas em oferecer "gratificações". Se você não aceita seus favores de uma maneira, eles encontrarão outra para tentar cooptá-lo.

Hollywood, Vale do Silício, bibliotecas presidenciais e fundações, grupos de private equities, empresas de relações públicas, grupos de especialistas, universidades e as empresas da família Trump estão cheios do dinheiro árabe. Os sauditas satisfazem a ganância americana representando habilmente o papel de cifrões envoltos em túnicas.

Donald Trump talvez seja a única pessoa que goste da exibição exagerada do ouro arrivista mais do que os sauditas. Ele está deslumbrado com a promessa saudita da compra de armas americanas por bilhões de dólares, assim como se sentiu lisonjeado, em sua visita ao reino, com a dança das espadas sauditas e em tocar a estranha esfera luminosa que se parece a um globo terrestre.

Antes mesmo da horrível execução de Jamal Khashoggi por suas justas críticas ao príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, estava claro que a dupla de tapados, Trump e Jared Kushner, havia apostado toda a sua estratégia no Oriente Médio em uma pessoa espantosamente autocrática e irresponsável.

O príncipe resolveu abrandar restrições draconianas em relação às mulheres a fim de ganhar um verniz de idealista liberal. Mas simultaneamente prendeu mulheres ativistas, pôs na cadeia e torturou membros da família real e empresários. E ainda tornou os americanos cúmplices de uma grotesca guerra no Iêmen, na qual despejou bombas fornecidas pelos Estados Unidos sem se preocupar com a morte de civis, inclusive em um ataque a um ônibus escolar, que matou dezenas de crianças. Isso enquanto a autodenominada defensora das crianças, Ivanka, estava na cidade, falando dos fabulosos "produtos" que ela e Jared iriam levar aos seus amigos em Riad.

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Os sauditas supõem despreocupadamente que a repugnância por seu comportamento desumano - desde as decapitações para forçar meninas adolescentes que não usavam lenços na cabeça a voltarem para uma escola em chamas para morrerem, como fez a polícia religiosa em Meca em 2002, ao assassinato descarado de Khashoggi - pode ser lubrificada com petróleo e dinheiro.

E por que não deveriam? A aliança americana com os sauditas sempre foi envenenada por cínicas barganhas.

Depois do boom perolífero do final dos anos 1970, os clérigos islâmicos se enraiveceram com o comportamento hedonista da casa real. Para continuar com seu estilo de vida hipócrita, seus membros ofereceram a liberdade cultural e os direitos das mulheres como uma compensação aos fundamentalistas, permitindo que os clérigos contrários ao Ocidente e madrasas florescessem e dando passe livre aos que financiavam o terrorismo.

Enquanto saudávamos os sauditas como nossos parceiros no combate ao terrorismo, eles alimentavam os monstros que vieram até aqui. Dezessete anos antes de o esquadrão da morte saudita viajar até Istambul para esquartejar Khashoggi ainda vivo, outro esquadrão da morte saudita viajara para os Estados Unidos com a missão de transformar aviões lotados de passageiros em bombas.

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Osama bin Laden e 15 dos 19 sequestradores do 11 de Setembro eram sauditas. Os reais sauditas obstruíram repetidas vezes os esforços americanos para combater a Al Qaeda nos anos que antecederam a data infausta.

No entanto, eles continuaram nossos queridos amigos. A Casa Branca de George W. Bush permitiu que o príncipe Bandar - o decano do corpo diplomático em Washington era tão próximo da família Bush que o seu apelido era "Bandar Bush" - retirasse em jatos americanos membros da família de bin Laden e outros ricos sauditas após a queda das duas torres. Bandar hospedou e influenciou políticos e jornalistas à base de charutos e uísque no pub inglês que ele mandou vir da Inglaterra e montar novamente em sua mansão de US$ 135 milhões, em Aspen, e de caçadas em sua propriedade em Wyshwood, na Inglaterra.

O próprio Barack Obama, que não morria de amores pelos sauditas, recusou durante oito anos a liberação de um documento supersigiloso datado de 2002 que detalhava os contatos entre representantes sauditas e alguns dos sequestradores do 11 de Setembro, inclusive cheques de reais sauditas a agentes em contato com os sequestradores, e uma conexão entre um funcionário de Bandar e um militante da Al Qaeda (a esposa de Bandar, a princesa Haifa, assinou cheques beneficentes que acabaram nas mãos de dois sequestradores).

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Nosso acordo Faustiano foi o seguinte: enquanto os sauditas continuassem mantendo baixos os preços para nosso petróleo, comprassem nossos jatos de combate, abrigassem nossas frotas e drones e nos dessem cobertura na região, poderiam manter seu país em sua orgulhosa condição medieval.

Era plenamente aceito o fato de que era inútil pressionar os sauditas a respeito de seu sistema feudal, a degradação das mulheres e as atrocidades em matéria de direitos humanos, porque eles persistiriam em suas atitudes. Até Hillary Clinton, quando secretária de Estado, nunca fez um discurso carregado de emoção no estilo de Pequim sobre as mulheres na Arábia Saudita obrigadas a se esconderem em baixo de um pano preto.

Durante a primeira guerra do golfo, travada em parte para proteger os sauditas da invasão ordenada por Saddam Hussein, mulheres sauditas - artistas e acadêmicas - entusiasmadas com a presença das soldadas americanas, resolveram dar uns passeios de automóvel. Foram chamadas de "prostitutas" e "putas" pelos clérigos. Receberam ameaças de morte e perderam seus empregos. A polícia dos costumes proibia as mulheres de dirigir, e a prática passou a ser considerada ilegal.

Os EUA não abriram a boca diante disso. O governo nem sequer lutou pelo direito de suas mulheres soldadas que protegiam a Arábia Saudita de recusar a diretiva do reino que as obrigava a usar uma abaya e o lenço na cabeça quando saíam da base.

Os sauditas precisam mais dos Estados Unidos do que país precisa deles. Agora, os americanos produzem mais petróleo do que eles. E no entanto, continuam a mimá-los e não os responsabilizam por seus métodos bárbaros.

Porque, afinal, a imprensa é a Inimiga do Povo, e merece umas pancadas. E depois os sauditas são os nossos queridos amigos, merecem mesuras, abraços e beijos.

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