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Psiquiatra atende próprio povo após guerra civil no Sri Lanka

De porta a porta, Jegaruban atende pessoas que sofreram com transtornos mentais

Por Mujib Mashal
Atualização:

KILINOCHCHI, SRI LANKA - Os aldeões chegam um de cada vez, carregando um pequeno livro azul que narra uma história de perda e dor. No verso de cada livro está o nome do paciente. Dentro, na primeira página, uma árvore genealógica. Um “X” é rabiscado ao lado de cada parente morto. Um “?” indica os desaparecidos. Sob o símbolo é anotada a causa, que, frequentemente, consiste nas mesmas letras maiúsculas: “GUERRA".

Se fosse suportável, seu trauma seria mantido no âmbito privado, atrás das paredes de lares modestos nesta região do norte do Sri Lanka. Mas é impossível. Assim, eles frequentam sessões mensais de terapia pública, formando fila para serem atendidos por V. Jegaruban. Conhecido como Jegan, ele é um psiquiatra do governo que assumiu a missão de ajudar as pessoas a retomarem suas vidas após o fim da devastadora guerra civil do país, que durou até 2009, num total de 26 anos, deixando um rastro de mais de 100 mil civis mortos.

Cerca de 10% dos 22 milhões de habitantes do Sri Lanka sofrem com algum distúrbio mental. O Dr. V. Jegaruban atende sobreviventes da guerra. Foto: Adam Dean para The New York Times

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“Todos pensam em construir pontes, construir casas, construir hospitais depois da guerra", disse Jegan, lamentando a falta de atenção ao “trauma coletivo". “Poucos se concentram nas vidas, em ajudar a trazer de volta a alegria. Não é fácil.” Muitas das desigualdades e divisões étnicas que levaram à guerra civil no Sri Lanka perduram. Impelida por uma cultura de voluntariado, a população se uniu para lidar com o trauma profundo que continua a envolver grande parte da sociedade.

O governo estima que, em todo o país, cerca de 10% dos 22 milhões de habitantes do Sri Lanka sofram de algum distúrbio mental, com quase 800 mil afetados pela depressão. Pesquisas indicam que a incidência é muito mais alta no norte do país, onde se concentrou a maior parte dos combates. Estudos menores no nordeste perto do fim da guerra mostraram que a incidência de estresse pós-traumático entre as crianças chegava a 30%.

O número de suicídios no Sri Lanka esteve durante muitos anos entre os 10 mais altos do mundo. A situação melhorou com aprimoramentos na infraestrutura facilitando o acesso aos hospitais, bem como restrições à venda de pesticidas mortíferos que as pessoas usavam para se envenenar. Mas o país ainda está entre os 20% piores nesse aspecto. A polícia atende cerca de 10 ocorrências do tipo por dia. De acordo com ativistas, o número pode chegar a 15. Pelo menos outras 100 a 150 pessoas tentam se suicidar todos os dias.

“Não há muitos dados confiáveis indicativos do tamanho do fardo para a saúde mental, mas é provável que o impacto seja muito maior do que os números que o governo está divulgando", disse o psicólogo Nivendra Uduman. “Alguns dos problemas são mais observados no norte e no leste. Mas os distúrbios principais (depressão e ansiedade) podem ser vistos por toda parte.”

Às vezes, são psiquiatras do governo como Jegan que tentam atender à demanda por tratamento. Mas, frequentemente, o fardo recai a voluntários (um bancário aposentado recentemente, uma ex-enfermeira, um mediador de disputas comerciais locais) que receberam treinamento terapêutico. Eles atendem chamadas nos serviços de apoio à vida ou participam de programas como Jegan.

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Jegan trabalha em Kilinochchi, distrito de aproximadamente 130 mil habitantes que foi palco de alguns dos piores combates. Era a capital dos Tigres Tâmeis, que, anos antes, romperam com o governo de maioria cingalesa em virtude de acusações de abusos.

A brutal ofensiva do presidente Mahinda Rajapaksa encurralou os rebeldes em Kilinochchi, e o exército do Sri Lanka, indiferente às acusações de crimes de guerra, fechou a área aos observadores internacionais e libertou toda a sua fúria. Houve época em que toda a população da região estava desabrigada. Na ausência de uma contagem precisa das vítimas, as Nações Unidas dizem que pelo menos 40 mil civis foram mortos no estágio final da guerra.

O método empregado por Jegan, que vai de porta em porta nos vilarejos vizinhos a Kilinochchi, ajuda a afastar o tabu ligado a problemas de saúde mental que, no passado, deixariam muitos de seus pacientes estigmatizados. Com ele, sua dor tem uma causa, uma história - registrada nos pequenos livros azuis.

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“Marido morreu de ataque cardíaco, uma filha morreu na guerra, uma irmã se matou", leu ele numa árvore genealógica. A paciente, uma mulher de mais de 60 anos, estava sentada diante dele, em silêncio. Ulaganathan Nagendram, 67 anos, veio com a mulher, Umadevi, temendo que estivesse sofrendo um ataque cardíaco.

Jegan não detectou nada de fisicamente errado com ele. Então, fez outra pergunta: qual era a preocupação de Nagendram? A mulher explicou que os dois filhos foram mortos na guerra, e o aniversário da morte de um deles tinha sido recentemente. “Ele sempre fica melancólico nessa época", disse, a respeito do marido. “Guarda tudo para si e nega estar infeliz ou deprimido. Ao menos nós, mulheres, conversamos entre nós e choramos quando necessário. Ele nunca faz isso.”

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