Quem disse que a arte é só para os ricos?

O Marian Goodman Gallery e o MoMA estão reavivando o interesse por uma arte produzida em edições acessíveis para a classe média dos anos 1960. Agora, alguns artistas estão assumindo a causa

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Por Blake Gopnik
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NOVA YORK – Por volta do fim de 1967, um casal de recém-doutorados, alimentando seis filhos com uma renda em torno de US$ 9 mil, começou a decorar sua modesta casa. Eles trouxeram uma obra do artista pop Roy Lichtenstein, do tamanho de uma parede, com uma paisagem marinha pontilhada. E uma bateria "macia" feita de lona por Claes Oldenburg. Além disso, um conjunto colorido de abstrações: quadrados dentro de quadrados de Josef Albers, da Bauhaus.

Esses doutorados eram meus pais, e tenho certeza de que minha carreira como crítico tem suas raízes nessa arte – arte com a qual nunca teríamos convivido se não fosse pela Multiples Inc. Durante seu auge em Nova York, a empresa fazia e vendia novos tipos de arte que convidam a algo próximo da produção em massa, permitindo preços com os quais até mesmo alguns jovens acadêmicos poderiam arcar.

Artista Tacita Dean em seu estúdio em Berlim. Foto: Mustafah Abdulaziz/The New York Times

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A Multiples Inc. abriu suas portas há 55 anos. Esse nascimento está sendo celebrado em uma exposição na galeria nova-iorquina de Marian Goodman, agora uma das principais negociadoras de arte do mundo, mas primeiramente conhecida como fundadora da Multiples Inc.

A empresa nasceu com um espírito "próximo à ideia socialista de que a arte deveria ser acessível", lembrou Goodman há alguns anos. Ela e seus parceiros "sentiram que, se os jovens pudessem comprar algo realmente bonito, isso talvez mudasse o público – um público que havia se tornado elitista, porque a arte era muito cara".

O mercado endinheirado da arte contemporânea, que agora vemos como algo garantido, surgiu menos de uma década antes da Multiples Inc., e em 1965 ainda poderia parecer algo incerto; uma alternativa menos exclusiva e excludente teve apelo instantâneo. "Artistas que questionaram o status da arte como mercadoria de luxo abraçaram os múltiplos como uma forma de arte mais democrática", diz um texto na parede do Museu de Arte Moderna, cuja recente expansão abriu espaço para uma galeria inteira dedicada a "The Art of the Multiple" (A arte do múltiplo).

No início, o objetivo era substituir o expressionismo artesanal da década de 1950 por trabalhos que explorassem os materiais e a produção em massa da Era Espacial. Para seus primeiros múltiplos, Goodman conseguiu que os artistas trabalhassem com plexiglas industrial; mesmo que essas peças só fossem lançadas em algumas dezenas de cópias, isso poderia ser suficiente para torná-las parentes conceitualmente próximas de artigos plásticos produzidos aos milhões.

Um broche de Lichtenstein, com o rosto de uma mulher em seu estilo pontilhado característico, foi lançado pela Multiples Inc. a um preço de apenas US$ 25. Trabalhando com bens industriais feitos por outros, em 1967 a empresa estava oferecendo pilhas de vidro espelhado de Robert Smithson, pioneiro da Land Art, e, em 1968, esculturas conceituais com fios de Fred Sandback.

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Em menos de uma década, no entanto, a Multiples Inc. começou a decair. Seus projetos mais ambiciosos muitas vezes perdiam dinheiro: a arte pop mais vendida, como a bateria de Oldenburg ou o broche de Lichtenstein, custava pelo menos tanto para ser feita quanto seu preço de venda. Nos anos 1980, quando a Multiples Inc. foi reduzida principalmente a gravuras, o mercado de arte sério estava sendo totalmente impulsionado por "preços altos de obras únicas", de acordo com o curador suíço Dieter Schwarz, que organizou a mostra da Multiples. Esse mercado excluiu – e ainda exclui – os clientes de classe média, para os quais a Multiples Inc. fora criada.

Isso não significou a morte absoluta da arte produzida em edições. Belas gravuras sempre existiram. Lojinhas de museus e algumas galerias ainda oferecem objetos não tão caros de artistas famosos como Damien Hirst ou Jeff Koons. Mas poucos desses objetos carregam a carga – estética ou social – dos múltiplos nos anos 1960. Em vez de discutir nossa cultura comercial, eles podem parecer totalmente cúmplices dela. Em 2012, o grande curador Germano Celant, que morreu no ano passado de covid-19, encerrou um grande ensaio sobre múltiplos, criticando a forma como haviam perdido seus ideais, transformando-se "em uma espécie de segunda ou terceira linha de arte da moda".

Múltiplos mais substanciais ainda são feitos, principalmente como angariadores de fundos para inúmeras boas causas. No ano passado, o Instituto de Artes da Califórnia, perto de Los Angeles, anunciou que celebraria seu 50º aniversário, em 2021, ao conseguir que 50 ex-alunos de destaque concebessem múltiplos para venda na CalArts. As obras múltiplas mantiveram apenas o suficiente de sua "mensagem provocativa e desorientadora", como disse o ensaio de Celant, ajustando-a de forma melhor às causas progressistas de hoje. Mas, quando limitada a esse nicho benemérito, a arte múltipla perdeu um pouco do impacto que teve quando realmente ficou frente a frente com obras únicas do mundo da arte.

O trabalho da artista Tacita Dean em seu estúdio. Foto: Mustafah Abdulaziz/The New York Times

Tacita Dean, importante artista britânica que agora vive em Berlim, sempre remou contra o mercado: os filmes lentos que a deixaram famosa só são vendidos nos velhos rolos de filmes. Assim, nos últimos nove meses, sua ideia de tempo "produtivo" gasto no confinamento incluiu falsificar a assinatura de Christian Dotremont, surrealista belga morto há muito tempo, em cem fac-símiles de um cartão-postal que ele enviou uma vez. Ela encomendou cem cópias de um cartão de visita do abstracionista Piet Mondrian, e então corrigiu manualmente o endereço em cada um deles para combinar com uma correção feita a lápis no protótipo.

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Para outro múltiplo, ela carimbou as palavras "Stamp Out Stamping" em cem cartões vintage – uma vez no primeiro cartão, duas vezes no segundo e assim por diante até que o último estivesse coberto por carimbos.

Sua produção total da pandemia chegou a 50 múltiplos excêntricos diferentes, cada um reproduzido cem vezes, para um portfólio intitulado "Monet Hates Me" (Monet me odeia). (O título vem da descoberta de Dean de um trecho de um roteiro francês de Claude Monet no qual parecia estar escrito "odeio Tacita". Foi um dos vários objetos modestos que a artista desenterrou durante um ano que passou nos arquivos do Instituto de Pesquisa Getty, na Califórnia; eles se tornaram as fontes de seus múltiplos da pandemia.)

Dean espera que suas criações custem cerca de 150 euros (US$ 184) cada peça, com todos os 50 rendendo menos do que ela normalmente poderia obter por uma única foto ou um desenho. Ou mais ou menos o que meus pais pagaram, em dólares corrigidos pela inflação, pela obra de Lichtenstein.

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"Eu sabia que estava me sabotando ao trabalhar em algo que quase não me daria dinheiro", disse ela. Mas seu objetivo era colocar uma "exposição inteira em uma caixa" ao alcance das bibliotecas e dos museus mais modestos – ou das casas. Dean fala de seu projeto como "antifetichizado", e de suas raízes claras nos múltiplos democratizados da Multiples Inc.

Essas origens são ainda mais claras em um dos múltiplos mais notáveis dos últimos tempos, o do artista dinamarquês Danh Vo.

Doze anos atrás, Vo descobriu uma carta tocante de 1861 de um missionário francês a seu pai, escrita no Vietnã enquanto o padre aguardava sua execução pelo regime anticatólico do país. Vo pegou essa carta e pediu ao próprio pai imigrante que a copiasse com a caligrafia elegante que havia aprendido quando criança no Vietnã. Eles então a puseram à venda por 300 euros, ou cerca de US$ 369 hoje, em quantas cópias artesanais o mundo quisesse. Vo acha que, até agora, seu pai escreveu a carta quase duas mil vezes.

"Se eu contribuí com alguma coisa para a arte, foi com esse trabalho", afirmou Vo em um telefonema de sua casa nos arredores de Berlim, acrescentando: "Até digo aos colecionadores: 'Por que você compraria alguma coisa mais?'" A peça reconhecidamente enigmática remete à fé e à identidade, ao trabalho artístico e manual, imigração e assimilação, Oriente e Ocidente, colonizado e colonizador.

Vo vê o preço quase trivial da carta como um peso conceitual adicional à peça. Ele ri das cópias que surgiram em leilões, dado que uma nova sempre pode ser encomendada pelo preço original – o que, com a inflação, na verdade equivale a um declínio constante no custo real. "Eu queria que meu melhor trabalho fosse o trabalho mais barato", garantiu Vo.

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