
05 de maio de 2018 | 10h00
HAMBURGO, ALEMANHA - Afirmar que estamos vivendo uma nova Guerra Fria é um eufemismo e um erro categórico. O confronto entre o Oriente comunista e o Ocidente capitalista no século XX foi, ideologias à parte, a história de duas superpotências tentando se refrear. O conflito global de hoje é muito menos estático.
O que estamos testemunhando agora é um novo Grande Jogo, uma colisão de grandes poderes que estão tentando conter as esferas de influência uns dos outros. Ao contrário do Grande Jogo do século XIX, entre os britânicos e o Império Russo, que culminou na luta pelo domínio sobre o Afeganistão, o Grande Jogo de hoje é global, mais complexo e muito mais perigoso.
Você pode chamá-lo de Jogo dos Três. Envolve três atores principais, Rússia, China e Ocidente, que estão competindo de três maneiras: geográfica, intelectual e economicamente. E há três lugares onde as diferentes reivindicações de poder se chocam: Síria, Ucrânia e Pacífico. Muitos dos conflitos decisivos do nosso tempo podem ser definidos por uma combinação desses três conjuntos.
Em diferentes graus, governos e cidadãos do Cairo a Copenhague se mostram cada vez mais céticos sobre a democracia liberal e o internacionalismo do pós-guerra terem sido, ou virem a ser, a escolha certa para eles. Para todos os que duvidam, a China e a Rússia estão à disposição, como modelos alternativos e poderes protetores, oferecendo novos arranjos para alinhamentos bilaterais e multilaterais. Você não quer seguir o direito internacional, a integração europeia ou os esquemas anticorrupção? Venha conosco!
O que se provará mais atraente para o governo egípcio, por exemplo, no caso provável de uma nova revolta em massa no país: um alinhamento com a Europa, que está irritantemente rigorosa no respeito aos direitos humanos, ou um alinhamento com a Rússia, que já mostrou que vai fazer vista grossa diante da opressão no plano doméstico – mesmo se um aliado usar armas químicas contra seu próprio povo?
Enquanto a Rússia oferece ferocidade militar, a China oferece uma variante mercantil. Ao contrário do Ocidente, a China não permite que os direitos humanos e o Estado de Direito atrapalhem os investimentos. No final de 2017, Pequim aumentou seu investimento na Ucrânia, anunciando-o como um importante passo em sua nova Rota da Seda para a Europa. O governo de Kiev já declarou, alegremente, que 2019 será “o ano da China” na Ucrânia.
Consideremos os Balcãs. Como primeiro-ministro de um Estado balcânico, você pode esperar indefinidamente que a União Europeia permita que você entre no clube, depois de aceitar rígidos padrões de conformidade e implementar 80 mil páginas de leis exigidas. Ou pode recorrer a investidores chineses, que não vão pedir nada disso. Em 2016, o presidente da China, Xi Jinping, passou três dias em uma visita de Estado à Sérvia. No ano anterior, a chanceler da Alemanha, Angela Merkel, parou lá por apenas algumas horas.
Desde então, empresas chinesas controladas pelo Estado compraram a maior siderúrgica da Sérvia, o aeroporto internacional de Tirana, na Albânia, uma importante usina de carvão na Romênia e alugaram parte do porto de Pireu, na Grécia, só para citar algumas de suas aquisições estratégicas na Europa.
Embora a China não pareça impulsionada por agressivos sentimentos antiocidentais, como a Rússia, Pequim e Moscou compartilham um mesmo objetivo estratégico: reduzir a influência ocidental em todo o mundo. A China distribui dinheiro para fortalecer novas alianças, enquanto a Rússia distribui veneno político para enfraquecer as antigas. É um par perfeito.
Assim como no Grande Jogo do século XIX, o Kremlin tem a vantagem de não precisar se preocupar com as críticas públicas no plano interno, enquanto impõe uma agenda não liberal no exterior. Pelo contrário: se a aplicação de força militar no exterior tende a desestabilizar os governos ocidentais, parece apenas reforçar o regime do presidente da Rússia, Vladimir Putin.
A população russa, aliás, glorifica as atrocidades de seus ex-líderes e também as do atual. De acordo com uma pesquisa de 2017 do Levada Center, 38% dos russos consideram o assassino em massa Joseph Stalin a “pessoa mais marcante” da história mundial, seguido por Putin, com 34%.
É aí que entra a dimensão intelectual do Grande Jogo: a autocrítica social, algo estranho a boa parte da sociedade russa, é uma característica definidora de muitos países ocidentais. Tensões publicamente expressas e debatidas entre o Estado e o povo, e entre os vários segmentos do público, são o que fazem uma sociedade liberal funcionar.
Mas a força desse ceticismo pode se revelar uma fraqueza se explorada por um poder que busque a destruição do próprio conceito de verdade. Como força intelectual, a Rússia é para a Europa o que Mefisto foi para Fausto: “Eu sou o Espírito que nega!” Parafraseando Johann Wolfgang von Goethe, que escreveu a versão mais famosa de sua história: tudo que o Ocidente construiu corre justamente para a destruição.
É por isso que a desinformação russa e sua grotesca distorção dos fatos são tão eficazes. Putin sabe que os europeus estão profundamente desconfiados de seus governos em questões de guerra e paz, especialmente depois que vários deles se basearam em informações de inteligência distorcidas para justificar a guerra no Iraque. O veneno usado no ex-agente russo Sergei Skripal e em sua filha, na Inglaterra, e as armas químicas que caíram impunemente sobre crianças na Síria mataram não apenas pessoas, mas também a confiança nos representantes eleitos em Londres, Paris e Berlim.
Não há dúvida de que a comunidade internacional às vezes violou seus próprios padrões, conduzindo ações legalmente questionáveis ou flagrantemente ilegais no Kosovo, no Iraque e na Síria. Rússia e China estão fazendo o oposto: usam seu poder de membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas para barrar a justiça e minar o Ocidente.
Quem vai ganhar a longo prazo? É muito cedo para saber se o Ocidente está disposto a enfrentar o desafio coletivamente. A boa notícia, porém, é que a Rússia e a China ainda podem perder no novo Grande Jogo. Jogar é caro, e o poder que tenta agarrar uma visão mais ampla da ordem global tende a fraquejar, pois recursos e vidas gastas no exterior não conseguem trazer paz e progresso em casa.
O poeta alemão Theodor Fontane descreveu a catástrofe que acabou com a tentativa do exército britânico de assegurar sua hegemonia contra a Rússia no Indocuche, em 1842: “A jornada começou com 13 mil – um voltou do Afeganistão”. De uma forma ou de outra, Rússia e China podem colher resultados semelhantes em breve./ Jochen Bittner é editor de política na revista semanal Die Zeit.
Encontrou algum erro? Entre em contato
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.