Rohingya de Mianmar vivem genocídio em câmera lenta

Impedidos de obter cuidados básicos no país, membros da minoria Rohingya estão morrendo por falta de atendimento médico

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Por Nicholas Kristof
Atualização:

Estado de Rakhine, Mianmar - Sono Wara passou o dia chorando. Seus gêmeos recém-nascidos tinham morrido no dia anterior, e ela estava agachada numa cabana com teto de palha, destruída pela dor e pela tristeza. Ela tem 18 anos e essa foi sua primeira gestação, mas, como integrante da minoria étnica Rohingya, ela não pôde recorrer ao auxílio de um médico. Assim, após um parto difícil, seus gêmeos foram enterrados no chão.

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Às vezes, Mianmar usa armas e facões para a limpeza étnica, e foi assim que, anteriormente, Sono Wara perdeu a mãe e a irmã. Mas a morte também é causada pelo bloqueio do acesso ao atendimento de saúde e da chegada de auxílio humanitário para os Rohingya, e é por isso que os gêmeos dela se foram.

Mianmar e sua líder, Aung San Suu Kyi, ganhadora do prêmio Nobel da paz, tentam tornar impossíveis as vidas dos Rohingya. Cerca de 700 mil Rohingya fugiram para Bangladesh nos meses mais recentes, mas o destino daqueles que ficaram para trás não estava tão claro, pois Mianmar, em geral, proíbe a entrada de estrangeiros nas áreas habitadas pelos Rohingya. O governo fez seu alerta ao deter dois jornalistas da Reuters que fizeram uma reportagem mostrando um massacre do exército contra os Rohingya; os repórteres podem ser condenados a até 14 anos de prisão por terem cometido um excelente trabalho jornalístico.

Depois de entrar em Mianmar com visto de turista, pude entrar despercebido em cinco vilarejos dos Rohingya. O que encontrei é um genocídio em câmera lenta. Os massacres e ataques com facões do mês de agosto do ano passado cessaram por enquanto, mas os Rohingya permanecem confinados aos seus vilarejos (e a um imenso campo de concentração), e têm sistematicamente negado o acesso aos serviços de ensino e saúde. Assim, eles morrem. 

Essa é minha quarta viagem em quatro anos para cobrir a situação dos Rohingya, uma minoria muçulmana desprezada num país de maioria budista. Inicialmente, usei o termo “limpeza étnica”. Mas cheguei a conclusão que os acontecimentos observados são provavelmente melhor descritos como genocídio. 

Estudiosos da Universidade Yale e do United States Holocaust Memorial Museum alertaram que pode se tratar de um genocídio, e o mesmo disse o diretor das Nações Unidas para direitos humanos, Zeid Ra’ad al-Hussein.

Este genocídio às vezes toma a forma de ataques violentos, mas, no momento, consiste na limitação ao acesso a alimento e atendimento médico. Essas táticas são típicas do manual dos genocidas", disse Matthew Smith, da Fortify Rights, grupo de direitos humanos especializado na situação de Mianmar (Burma). "A fome deliberada e o enfraquecimento de uma população são características observadas em outros genocídios".

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Umar Amin é banhado pela irmã mais velha. Ele tem 4 anos mas teve o crescimento afetado pela desnutrição, que o impede de andar Foto: Nicholas Kristof|The New York Times

Além da dor física e emocional, Sono Wara vive em constante medo. O vilarejo dela não foi atacado na onda de violência de agosto.“Mas isso pode ocorrer aqui", disse. Em 2012, pessoas de um vilarejo próximo mataram a mãe e a irmã dela usando facões.

Uma teoria supõe que Mianmar está tentando criar tal clima de medo e miséria que os Rohingya serão obrigados a partir por vontade própria, evitando assim que o exército se envolva em sangrentos massacres. Sono Wara disse que ela e o marido conversaram a respeito de uma fuga para a Malásia, uma jornada perigosa que resulta em estupros, roubos e mortes.

A limpeza étnica de Mianmar se tornou impossível de ocultar em agosto, com o êxodo de Rohingya contanto histórias de massacres e pogroms (ataques violentos a determinados grupos). Ao entrevistar esses refugiados no final do ano passado, fiquei particularmente abalado com o relato de uma mulher, Hasina Begum, que me contou como os soltados executaram os homens e meninos do vilarejo dela, fizeram uma fogueira com os corpos e levaram as mulheres para uma cabana, para estuprá-las. “Eu tentava esconder minha bebê no véu, mas eles viram a perna dela”, disse Hasina Begum. “Eles agarraram minha bebê pela perna e a jogaram no fogo.”

O que acontece agora com aqueles que ficaram para trás nos vilarejos é um tipo mais banal de brutalidade. Numa vila remota, acessível somente por barco ou a pé, vi um emaciado garoto de 4 anos, Umar Amin, sendo banhado pela irmã mais velha. Peguei uma faixa MUAC, usada para medir a desnutrição infantil usando como referência o braço, e Umar Amin estava na zona vermelha de alto risco, com um quadro de desnutrição aguda. Ele não pode andar nem falar e precisa desesperadamente de ajuda, mas nunca pôde ir ao médico.

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Grupos internacionais de ajuda estão prontos e ansiosos para ajudar, mas o governo frequentemente bloqueia seu acesso, especialmente nas áreas ao norte, perto da fronteira com Bangladesh. É difícil compreender essa proibição do acesso das organizações humanitárias como algo diferente de uma política deliberada para desgastar e expulsar os Rohingya, um dos motivos pelos quais vejo a situação como um genocídio em câmera lenta.

E quanto à “ilustre" Aung San Suu Kyi, que ganhou o prêmio Nobel da paz por sua decidida luta em defesa dos direitos humanos em Mianmar? Na prática, ela é agora a líder do governo de Mianmar e se revelou não apenas uma defensora deste genocídio, como também uma cúmplice. Suu Kyi não controla o exército, que cometeu os massacres, mas ajudou a manter afastados os grupos humanitários. Também tentou apagar a existência dos Rohingya, rejeitando o termo e dizendo que são apenas imigrantes ilegais de Bangladesh (na verdade, um documento de 1799 mostra que os Rohingya já habitavam a região nessa época). E é o governo dela que está levando a cabo o processo criminal contra os dois repórteres da Reuters.

Consegui um visto de turista porque eu estava comandando um trecho de uma visita a Mianmar patrocinada pela The New York Times Company. O visto veio acompanhado de um alerta rigoroso, proibindo meu envolvimento em qualquer tipo de trabalho jornalístico. Em geral, acredito que os jornalistas devem obedecer as leis dos países que visitam, mas abro uma exceção no caso dos governos que usam suas leis para cometer e ocultar crimes contra a humanidade.

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Em um dos vilarejos alcançados de barco, conheci Zainul Abedin, enlutado por causa da mulher, Jahan Aara, 20 anos, que morrera no parto, bem como o bebê. Era sua primeira gravidez, e ela não recebeu cuidados médicos. "Talvez ela tivesse morrido mesmo num hospital, mas ao menos teria uma chance", disse Zainul Abedin.

Ele pensa em escapar, o que envolve pagar a contrabandistas de pessoas US$ 2.300 para que o levem à Malásia. As autoridades reprimem os funcionários humanitários e jornalistas, mas parecem fazer vista grossa para esses contrabandistas de pessoas. Muitos daqueles que começam a jornada morrem antes de concluí-la. Zainul Abedin conhece os riscos porque seu próprio pai partiu na esperança de chegar à Malásia e não deu mais notícias.

"Somos como um pássaro na gaiola", disse-me Zainul Abedin. “Eles nos dão cada vez menos, ficamos cada vez menores, e então morremos. Ou podemos tentar fugir, e então eles nos matam.”

Os Rohingya estão confinados aos seus vilarejos e ao campo de concentração já há quase seis anos, com restrições ainda mais rigorosas após os massacres de agosto. Os mais velhos se queixaram da perda do ensino, pois os Rohingya não são admitidos nas escolas do país. Os vilarejos tentam manter escolas informais por conta própria, mas, sem livros didáticos, carteiras e professores adequados, não se vê muito aprendizado, e nem as crianças mais brilhantes têm esperança de chegar ao ensino médio. O resultado é uma geração perdida.

Muitos leitores de Mianmar devem considerar esta reportagem injusta, pois a narrativa deles é bem diferente. Htun Aung Kyaw, leitor do Partido Nacional Arakan, principal agremiação política do estado de Rakhine, explicou-me os pontos principais de acordo com seu ponto de vista: os Rohingya são imigrantes ilegais, que tentam há décadas criar um estado islâmico separado, abrigando insurgentes armados que cometem atrocidades e queimam os próprios vilarejos na tentativa de responsabilizar o governo de Mianmar.

Isso tudo é bobagem, mas um grupo rebelde de Rohingya precipitou a violência de agosto com ataques contra delegacias de polícia. O exército respondeu com uma tática de terra arrasada que, pela contagem dos Médicos Sem Fronteiras, resultou na morte de pelo menos 9 mil Rohingya.

Os cidadãos comuns parecem frequentemente ter sido manipulados pela propaganda anti-Rohingya, especialmente no Facebook. Um líder mais moderado dos vilarejos de Rakhine, U Maung Kyaw Nyunt, disse-me que o ódio em relação aos Rohingya aumentou por causa da chegada dos smartphones e do Facebook, resultando numa virulenta propaganda anti-Rohingya que os retrata como terroristas assassinos que cometem atrocidades contra os budistas. 

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"Os jovens usam demais os smartphones", disse ele. "Só enxergam as coisas com os telefones, e não com os próprios olhos".

O exército tem unidades de operações eletrônicas treinadas na Rússia, e uma teoria diz que o exército pode estar por trás de parte da campanha nas redes sociais contra os Rohingya. O Ocidente não exerce muita influência sobre Mianmar, e a China protege o país no Conselho de Segurança das Nações Unidas. 

David Mathieson, que há anos trabalha como analista da situação dos direitos humanos em Mianmar, disse que os protestos exteriores a respeito dos Rohingya tiveram pouco efeito, sendo às vezes contraproducentes, com os exageros se encaixando na narrativa vitimista de Mianmar.

Ainda assim, podemos trabalhar com outros países para aumentar o custo da limpeza étnica, e o direito internacional nos obriga a adotar medidas para impedir o genocídio. Um primeiro passo fundamental é a aplicação de sanções voltadas contra os líderes de Mianmar. O governo dos Estados Unidos também pode fazer mais para identificar e constranger os perpetradores, exercendo uma pressão incessante pelo acesso das organizações humanitárias. 

Foi bom ver Nikki Haley, embaixadora dos EUA na ONU, denunciando Mianmar no mês passado por tornar a vida dos Rohingya "uma sentença de morte". Podemos pedir à comunidade de espionagem que reúna provas de crimes de guerra. Por meio da Voice of America, podemos transmitir aulas para as escolas dos Rohingya.

O sofrimento nesses vilarejos dos Rohingya é fácil de ignorar em tempos de agitação. Todos sofremos com as distrações e o esgotamento da nossa compaixão. Mas, como disse Elie Wiesel, sobrevivente de um genocídio diferente, em seu discurso de aceitação do prêmio Nobel da paz, “Sempre que homens e mulheres forem perseguidos por causa de sua raça, religião ou opinião política, esse lugar deve - nesse momento - se tornar o centro do universo". De acordo com esse critério, a cabana de teto de palha onde Sona Wara chora a morte de seus gêmeos nos implora para ser tratado como o centro do universo.

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