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Quebrando o teto de vidro das oficinas mecânicas

As mulheres são minorias na indústria automotiva, mas uma pioneira, que morreu em 2019, continua inspirando outras a perseguirem os seus sonhos e a se incentivarem

Por Mercedes Lilienthal
Atualização:

Uma das missões de Jessi Combs em vida era ajudar as mulheres a perseguirem os seus sonhos na indústria automotiva. Talentosa soldadora, construtora, corredora off-road e personalidade da TV, Jessi também sonhava com a velocidade. A velocidade de verdade.

Há quase dois anos ela estabeleceu o recorde de velocidade para mulheres em terra, 841.337 km/h, em um leito de lago seco no Oregon. Mas o seu carro a jato bateu durante a façanha, matando-a. Ela tinha 39 anos.

Jessi Combs (dir.)dando instrução especializada durante uma oficina de solda no programa Real Deal Revolution. Foto: Sam Bendall via The New York Times

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Jessi  foi uma “deusa pioneira”, segundo Sana Anderson, que lutou contra os estereótipos e os céticos a vida toda para perseguir o seu sonho, trabalhar como técnica de diesel em caminhões pesados e trailers.

Jessi era uma heroína para Sana e para inúmeras outras mulheres.

“Ela se encaixava de maneira tão natural nos negócios – como deveria ser”, acrescentou Sana, 27, que mora em Beach Park, Illinois, ao norte de Chicago. “Ela experimentou muitas coisas diferentes, tinha várias habilidades. Não é isso que queremos na nossa juventude?”

Heather Holler só tinha olhos para o futebol semiprofissional, sonho interrompido por uma cirurgia. Quando competiu em um evento de autocross pela primeira vez, em 2009, todo um novo mundo se abriu para ela. Ela superou o próprio namorado da época, e “vendi meu SUV duas semanas depois e comprei o meu carro”.

Heather Holler, nativa de Nevada, atualmente residindo na Alemanha, acrescentou: “Mas como não sabia nada a respeito de carros, comprei um com o motor estourado”. Para aprender a consertá-lo, frequentou o Instituto Técnico Universal em Sacramento, Califórnia. Ela via Jessi Combs no programa de TV Xtreme 4X4 todas as manhãs, antes de trabalhar.

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“Aprendi, em primeiro lugar, quem era Jessi quando comecei a trabalhar com automóveis”, contou.

Depois de formar-se, em 2012,  Heather tornou-se uma mecânica em tempo integral para a Subar Motorsports USA. Entre os eventos, ajudou a construir um carro de rally para Bucky Lasek, um dos maiores competidores. Ela também era mecânica de destaque da DirtFish Rally School e em 2021 tornou-se mecânica da equipe de testes da Hyundai Motorsport GmbH World Rally Championship na Alemanha.

Eliza Leon, concierge especialista no Leilão de Carros de Manheim, em El Paso, Texas, vem de uma longa linha de trsbalhadores da área. Seu pai era mecânico de diesel para equipamentos pesados e de máquinas de terraplenagem. Seu avô materno e tios também eram mecânicos de diesel entusiastas de veículos com tração nas 4 rodas. Eliza cresceu no Texas “ajudando o avô e os tios com seus caminhões off-road de grande porte e semi-reboques”, contou.

Jessi “era tudo o que eu queria ser ao crescer”, disse Eliza. “Era inteligente, experiente, instruída no campo automotivo, uma construtora talentosa, trabalhadora incansável e atraente”.

Em 2002, Eliza tinha 17 anos quando concluiu os cursos de tecnologia de automóveis no secundário. Sua melhor amiga falou para ela a respeito de Jessi, que estreara no Xtreme 4X4 em 2001.

Pouco mais de dez anos depois, em 2014, Eliza conheceu sua mentora na televisão, no Programa da Specialty Equipment Market Association, em Las Vegas, mais conhecida como SEMA.

“Ela era tudo o que eu esperava que seria: graciosa, amável, carinhosa e autenticamente interessada no que eu tinha a dizer”, contou.

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Elas entraram em contato cinco anos mais tarde via Instagram e pelo telefone. “Sua ética de trabalho, seu entusiamo, o seu amor pelos negócios não tinham iguais”, disse Eliza. “Ela mudou a indústria para melhor, e, mais do que isso, inspirou muitas outras a continuar o seu trabalho. Este é um testemunho vivo do que ela defendia”.

Durante os seus 14 anos de carreira, Eliza foi técnica, redatora de serviços de compras, avaliadora de danos automotivos, construtora de automóveis off-road, produtora e personalidade de TV, em Xtreme Off-Road.

“Quanto mais você trabalha em veículos, mais você aprende”, afirmava. “A tecnologia evolui continuamente, é uma sala de aulas sem fim”.

E assim o legado dos Combs continua vivo, em mulheres como Eliza, Heather e Sana e em organizações como a Real Deal Revolution e a Fundação Jessi Combs.

Heather Holler ajudou a construir um carro de rali para um piloto. Foto: Subaru Motorsports USA via The New York Times

Além da árvore genealógica automotiva da família Combs, há uma variedade de programas, grupos comerciais e páginas de redes sociais que apoiam mulheres que seguem suas carreiras no setor automotivo, desde a solda, até o trabalho com a chave inglesa, a fabricação e a pintura.

Sana, americana de primeira geração, filha de mãe polonesa e pai paquistanês, se dedica a inspirar outras mulheres. Ela logo oferece assessoria sobre os “altos e baixos” com que uma mulher se defronta na indústria. “Todos os momentos de dificuldades valem e valerão o esforço”, ela disse.

Embora tenha frequentado a escola, ela diz que a experiência direta é o melhor professor. “O meu maior aprendizado foi no tempo em que fiquei na oficina”.

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Todas as mulheres falaram que é necessário ter uma casca grossa e conseguir adaptar-se a situações difíceis, que infelizmente não são raras, como aliás em qualquer outro local de trabalho.

Segundo uma pesquisa da Deloitte e a Automotive News, as mulheres constituem apenas 25% da mão de obra da indústria automotiva. Esse campo também é essencialmente branco, segundo estatísticas federais. Na área de reparos e manutenção automotiva, a participação das mulheres em 1 milhão aproximadamente de trabalhadores, nem mesmo chega a 10%.

Eliza descobriu que se ela se armasse de um curso e de mais credenciais, ela poderia se impor. As brincadeiras parariam quando ela perguntasse aos infratores se falariam coisas discriminadoras aos seus colegas homens ou se tolerariam abusos com suas filhas, mães e esposas. Preservando-se cuidadosamente em situações difíceis, confiando no seu trabalho e “procurando a oficina que desestimulará os praticantes de bullying,” ela disse, dará às mulheres confiança em suas carreiras.

Para Sana, “o maior desafio vem de você mesma”, afirmou. “Houve tantas oportunidades que deixei passar quando era mais jovem porque não tive o suporte devido”. Cada erro que ela cometia era exagerado pelo fato dela ser mulher. “Não quero desestimular ninguém – principalmente as moças”.

A ajuda informal que as mulheres oferecem entre si é inspiradora, mas há também bolsas de estudos nesse campo. A Jessi Combs Foundation concedeu recentemente um total de US$ 30 mil a sete mulheres, entre elas Sana e Heather.

Todos os anos, a SEMA Businesswoman’s Network concede uma bolsa da Jessi Combs Rising Star a uma jovem com menos de 30 anos. O grupo também hospeda seminários on-line que se destinam a todos os níveis de mulheres na indústria, e disponibiliza recursos por meio da sua rede social e do seu site.

Eventos e oficinas para mulheres na indústria são realizados durante o ano todo. A Real Deal Revolution ensina a mulheres e moças ofícios próprios da indústria automotiva, como solda e desenho automotivo. Fundada por Jessi Combs e Theresa Contreras (presidente, designer e pintora de desenhos personalizados da LGE-CTS Motorsports), esta organização sem fins lucrativos  proporciona treinamento para ajudar as mulheres a ganharem confiança.

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As mulheres deste setor costumam ser generosas com os conselhos. Sarah Lateiner do programa All Girls Garage da Motor Trend atua nas redes sociais. No Instagram, sua página Bogi’s Garage hospeda semanalmente ‘happy hours’ com entrevistas de mulheres de toda a indústria.

As mulheres inspiradas por Jessi Combs não gostariam de nenhuma outra carreira, mas elas têm consciência dos obstáculos que as mulheres enfrentam. “O conhecimento é a sua base, as credenciais são sua armadura e a sua força”, disse Eliza. “ É o que as conduz através da luta, e vale muito a pena”.

Heather deu este aviso: “Às vezes, você ficará apavorada. Às vezes, ficará sem graça. Desconfortável. Vá aprender. Não tenha medo de dizer a alguém que você não sabe algo. Aceite o fato de que você é humana. Aprenda com os seus próprios erros. Ah, e se tiver de pedir emprestada uma ferramenta mais de duas vezes, trate de comprar uma”. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

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