Ter filhos ou não, eis a questão

Em um mundo de caos pandêmico, conflitos políticos e catástrofes climáticas, alguns pais em potencial veem um futuro escuro demais para procriar

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Por Alex Williams
Atualização:

Antes de se casar com o marido, Kiersten Little o considerava um pai ideal. “Sempre pensamos ‘Ah, sim, quando você se casa, você tem filhos", ela disse. “Era a coisa esperada.”

Myka McLaughlin é uma dessas pessoas que questionam se devem colocar mais um ser humano no mundo. Foto: Rachel Woolf/The New York Times

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Esperada, isto é, até que o casal fizesse uma viagem de carro por oito meses depois que Little concluiu seu mestrado em saúde pública na Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill.

“Quando passamos pelo oeste - Califórnia, Oregon, Washington, Idaho - estávamos dirigindo por áreas onde toda a floresta estava morta, as árvores derrubadas”, disse Little. “Passamos pelo sul da Louisiana, que foi atingida por dois furacões no ano passado, e cidades inteiras foram arrasadas, com enormes árvores arrancadas pelas raízes.”

Agora com 30 (e dois anos de casamento) Little sente “o fardo do conhecimento”, ela disse. O casal vê um desastre crescente quando lê os últimos relatórios sobre as mudanças climáticas e fóruns sobre o gelo do Ártico. A preocupação sobre ter filhos se instalou.

“No último ano, pensei: ‘Meu Deus, tenho que tomar uma decisão; já está na hora'”, ela disse. “Mas não sei como poderia mudar de ideia. Nos próximos 10 anos, sinto que só haverá mais razões para não querer ter um filho, e não o contrário.”

Esses medos não são necessariamente infundados. Todo novo ser humano chega com uma pegada de carbono.

Em uma nota aos investidores no verão passado, analistas do Morgan Stanley concluíram que o “movimento para não ter filhos devido aos temores sobre as mudanças climáticas está crescendo e impactando as taxas de fertilidade mais rápido do que qualquer tendência anterior no campo do declínio da fertilidade”.

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Há muito debate, no entanto, sobre a ideia de que ter menos filhos é a melhor maneira de tratar o problema. Em uma entrevista com a Vox em abril, Kimberly Nicholas, cientista do clima e coautora de um estudo de 2017 sobre as mudanças mais eficazes no estilo de vida para reduzir o impacto climático, disse que a redução da população não era a resposta.

“É verdade que mais pessoas consumirão mais recursos e causarão mais emissões de gases de efeito estufa”, disse Nicholas. “Mas esse não é, na verdade, o prazo relevante para realmente estabilizar o clima, considerando que temos esta década para cortar as emissões pela metade.”

Ainda assim, a preocupação parece estar crescendo. Entre os adultos sem filhos nos Estados Unidos pesquisados pela Morning Consult no ano passado, 1 em cada 4 citaram a mudança climática como um fator para o motivo de não terem filhos no momento.

Outra pesquisa realizada em 2018 pela Morning Consult para o The New York Times descobriu que entre os jovens adultos nos Estados Unidos que disseram ter ou esperar menos filhos do que o número que consideravam ideal, 33% listaram as mudanças climáticas, enquanto 27% mencionaram o crescimento populacional como uma preocupação.

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Enquanto as preocupações econômicas permaneceram fundamentais, com 64% citando o alto custo dos cuidados com as crianças, 37% citaram a instabilidade global e 36%, a política doméstica. Para alguns, essas questões estão todas juntas. Em 2020, a taxa de natalidade nos Estados Unidos caiu pelo sexto ano consecutivo, uma queda de 4% provavelmente acelerada pela pandemia.

O trauma de quase dois anos devido ao coronavírus também fez alguns pais em potencial hesitarem. Para Marguerite Middaugh, uma advogada de 41 anos de San Diego, a pandemia, juntamente com a devastação relacionada ao clima, a levou a suspender os tratamentos de fertilidade para o primeiro filho. “Ver as pessoas que não se vacinaram, que não cuidam de sua comunidade”, ela disse. “Isso realmente me fez pensar se eu quero trazer uma criança a este mundo.”

Enquanto os altos custos de habitação, as dívidas da faculdade, sem mencionar a chamada recessão sexual para os millennials (os mais velhos agora têm 40 anos) influenciam o planejamento familiar para muitos, as ameaças existenciais também fazem parte do cálculo da procriação.

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Um aumento do extremismo político, em casa e no exterior. Uma pandemia que matou mais de 5 milhões. Inundações que destruíram cidades da Europa Ocidental. Incêndios florestais na Costa Oeste que crescem em uma escala cada vez mais inimaginável a cada verão. Diante de notícias tão alarmantes, alguns pais em potencial se perguntam: Quão prejudicial pode ser trazer uma criança para este (literal e figurativamente) ambiente?

Ilustração de Sophi Miyoko Gullbrants/The New York Times. 

Para Jenna Ross, 36, uma ceramista que mora perto de Fredericton, em New Brunswick, sua decisão de não ter filhos em um mundo ameaçado pelas mudanças climáticas deriva de um instinto protetor. “Aproveitar o amor que tenho por meu hipotético filho não nascido me consola ao poupá-los de um futuro inóspito”, ela disse. “Desta forma, minha escolha é como um ato de amor.”

Essas visões nem sempre cruzam fronteiras geográficas, políticas ou de classe social - principalmente porque a mudança climática é geralmente pintada como uma questão partidária, e não científica, na arena política. Na pesquisa do New York Times de 2018, as pessoas que citaram a mudança climática como motivo para terem menos filhos tinham uma probabilidade significativamente maior de serem democratas e com nível universitário, e um pouco mais de serem brancas, não religiosas e com salários altos.

Profissionais qualificados também têm um acesso maior ao aborto e controle de natalidade, e os meios econômicos para escolher qualquer estilo de vida, embora as recentes restrições ao aborto no Texas, por exemplo, também complicam o cálculo da procriação.

Apesar de tudo, essas questões estão se infiltrando no diálogo cultural de uma maneira que lembra o movimento "ecológico" da era hippie, quando The Population Bomb, o best-seller sísmico de 1968 do biólogo da Universidade de Stanford, Paul R. Ehrlich, previu um planeta estéril e exausto onde centenas de milhões morreriam de fome durante a década de 1970.

O senador Bernie Sanders e a congressista Alexandria Ocasio-Cortez abordaram a questão nos últimos anos, com Ocasio-Cortez, em uma live do Instagram em 2019 afirmando "um consenso científico de que a vida das crianças vai ser muito difícil", que leva “os jovens a terem uma pergunta legítima: é certo ainda ter filhos?”

Celebridades como Miley Cyrus e Seth Rogen também levantaram a questão, assim como escritores como o colunista do New York Times Paul Krugman e Katha Pollitt, a poeta e ensaísta.

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“O mundo precisa de mais gente?” Pollitt escreveu em um ensaio no The Nation em junho. “Não se você perguntar às geleiras, às florestas tropicais, ao ar ou às mais de 37.400 espécies à beira da extinção graças à expansão implacável dos seres humanos em cada canto de nosso planeta superaquecido.”

Embora a mudança climática não seja uma preocupação nova, o agravamento da crise apresentou o problema para muitos pais em potencial, disse Josephine Ferorelli, fundadora da Conceivable Future, uma organização que prepara eventos para futuros pais discutirem como o medo referente ao clima está moldando suas vidas reprodutivas .

“Algo aconteceu no verão passado”, disse Ferorelli. “Três meses atrás, nossa caixa de entrada estava vazia. Mas, nos últimos dois meses, temos notícias de pessoas de todo o país que estão chateadas e perturbadas.”

Não é de se espantar que algumas pessoas que adiam ter filhos por causa da carreira ou outros interesses agora se perguntam se a coisa mais gentil a fazer pelo filho não nascido é mantê-lo assim.

Ilustração de Sophi Miyoko Gullbrants/The New York Times. 

Os temores do fim do mundo dificilmente são a única razão pela qual alguns optam pelo estilo de vida sem filhos.

“Fui criada em uma família que não tentou me condicionar para ser uma futura mamãe ”, disse LiLi Roquelin, 41, uma cantora e compositora francesa casada que mora no Queens. Ela se considera uma integrante orgulhosa do movimento chamado "childfree by choice" (sem filhos por escolha), celebrado nas redes sociais com as hashtags #childfree e #neverkids, e recentemente escreveu e postou um hino chamado Childfree.

Mesmo assim, ela disse que as mulheres que optam por não ter filhos geralmente enfrentam intensa pressão social de familiares, amigos e até mesmo de profissionais da área médica. “Ao longo dos anos, fui criticada como desumana ou sem afeto”, ela disse. “Na casa dos 30 anos, meu ginecologista ficava dizendo que meus hormônios acabariam.”

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Para ela, essa resistência é o preço a pagar. Roquelin disse que tem uma vida rica e gratificante sem filhos, e agora está estudando para um mestrado em administração de empresas para capitalizar sua carreira musical. “Tenho muito mais coisas para explorar em minha jornada”, ela disse, “que não envolvem criar outros seres humanos sofredores em um planeta sem suprimentos". /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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