Um esporte brutal em homenagem aos que já se foram

Mistura de rúgbi e briga de rua, o Lelo Burti é disputado no pequeno vilarejo de Shukhuti, na Georgia; o vencedor leva um troféu em honra aos seus mortos

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Por Andrew Keh
Atualização:

SHUKHUTI, GEORGIA - Luka Torotadze, 11, estava agachado ao lado do túmulo de seu tio-avô Bitchiko, limpando a poeira de uma bola de couro que estava ao lado da lápide. A bola, em outros tempos preta e agora de uma cor acinzentada, havia sido posta ali 15 anos antes. Uma visita a qualquer cemitério da aldeia revelaria dezenas de outras.

Era um sábado. Diante de outro túmulo ao lado dele, a prima de Luka, Barbare, e suas irmãs ajudavam a mãe a limpar a tumba do pai delas, Vitaly. Sua esperança era que, até a noite, uma bola fosse depositada também sobre o túmulo de Vitaly.

Luka Torotadze, 11, no túmulo de seu tio-avô Bitchiko Torotadze, onde foi depositada uma bola em 2004. Foto: Pete Kiehart para The New York Times

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Todos os anos, nesta época do ano, em Shukhuti, na Georgia, costura-se uma bola de couro para o Lelo Burti, um jogo tradicional brutal - mistura singular de rúgbi em grande escala e de uma briga de rua em escala maior ainda - outrora popular na região de Guria, agora só é jogado uma vez por ano, aqui no Leste ortodoxo.

A bola, único equipamento e troféu final, é guardada pela equipe vencedora e colocada sobre o túmulo escolhido para honrar a memória da pessoa que está enterrada ali. "A bola se torna uma relíquia, um símbolo de vitória, de respeito", disse Vakhtang Torotadze, irmão mais velho de Vitaly. "É por isso que precisamos dar o nosso máximo".

Cinco anos atrás, o Lelo Burti foi declarado "bem cultural imaterial" pelo governo da Georgia. No dia do jogo, a aldeia se divide em Shukhuti de cima e Shukhuti de baixo, e os homens de cada metade competem para carregar a bola de volta para seu lado da vila. Quando isso acontece, o jogo acaba.

Não há fronteiras, nem limites para o número de participantes, e quase não há regras. As mulheres não estão proibidas de jogar, mas raramente jogam. A disputa costuma durar cerca de duas horas, mas às vezes se prolonga noite adentro.

Sentado na sala de visitas de sua casa, no mês passado, Vakhtang Chkhatarashvili, 54, elogiou o filho, Mishiko, dizendo que era um jovem respeitável. Em 2014, Mishiko morreu em um acidente de automóvel. Tinha acabado de completar 18 anos. Semanas mais tarde, a equipe de Shukhuti de baixo participou do Lelo Burti em homenagem a Mishiko e venceu com a ajuda de vários de seus amigos. A bola foi depositada no túmulo do rapaz, onde brilha desde então sempre limpa, sobre um suporte de metal.

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Padre Saba, o sacerdote local, joga a bola antes do começo do jogo no meio da multidão de jogadores. Foto: Pete Kiehart para The New York Times

"Cuidar da bola significa cuidar do meu menino", disse Chkhatarashvili. Bolas de jogos disputados há dezenas de anos estão espalhadas pelos cemitérios de Shukhuti.

Na noite anterior à disputa deste ano, mais de dez homens representando ambos os lados da aldeia reuniram-se para um "supra", um verdadeiro banquete georgiano. Eles consumiram quantidades absurdas de carne, tomaram vinho e a "chacha", o licor de uva georgiano. E brindaram à memória de Vitaly Torotadze, que foi homenageado este ano pelo Shukhuti de cima, bem como a de Aleko Solidze, que receberia a bola se Shukhuti de baixo ganhasse o jogo.

Pela manhã, a bola foi enchida de terra até pesar 16 quilos e abençoada com vinho pelo Padre Saba, o sacerdote local. Às 17h, o Padre Saba deixou a igreja abraçando a bola; com uma corridinha deu início ao jogo, levantando a bola no ar.

Corpos se chocaram de todos os lados. A bola desapareceu sob uma pilha de carne entre pequenos torrões de terra que voavam. A ação que se seguiu consistiu de uma única aglomeração cada vez maior, em que às vezes se chocavam mais de cem pessoas.

A aglomeração acabou batendo contra a fachada de uma das poucas lojas da vila, quebrando o vidro. Então deslocou-se morro abaixo, depois da rua principal, até um pequeno bosque. Homens se engalfinhavam na luta e saíam, em busca de ar, camisetas rasgadas, sapatos perdidos. Um jogador foi carregado para uma ambulância.

No meio da balbúrdia, em que os times tentam carregar a bola para seu lado da aldeia. Foto: Pete Kiehart para The New York Times

Depois das 18h, Shukhuti da cima conseguiu uma vantagem. As ondas humanas se tornaram mais longas. Empurrando-se na direção do trecho final, os jogadores foram aos poucos se desvencilhando e conduziram a bola através do riacho que representa a meta. Uma hora e 40 minutos depois do início, foi declarado o encerramento do jogo.

Os homens de cima dirigiram-se para o cemitério e depositaram a bola em frente ao túmulo de Vitaly Torotadze, sob sua lápide. A viúva, Tatiana Ganja, pôs o braço sobre a pedra. Quando ela se levantou, deu início ao banquete que levara três dias para preparar. Vakhtang Torotadze, dono de uma loja local, entrou no cemitério massageando um ponto dolorido no peito. Alguém sugeriu que ele devia se sentir feliz por acrescentar mais uma bola ao túmulo da família. Ele deu de ombros.

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"Gostaria de que a gente não estivesse nesta situação e meu irmão precisasse de uma bola", afirmou. Deu uma tragada no cigarro e foi para a festa. / Tamar Kalandadze contribuiu para a reportagem.

TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

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