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Versos de Seamus Heaney ganham mostra na Irlanda

A exposição 'Ouça agora novamente' leva ao público os experimentos do bardo irlandês

Por Jim Dwyer
Atualização:

DUBLIN - Num dia de dezembro, sete anos atrás, o poeta Seamus Heaney dirigiu até a porta dos fundos da Biblioteca Nacional da Irlanda, levando no porta-malas um sótão em 12 caixas.

A carga consistia em mais de 10 mil papéis - rascunhos de poemas em envelopes e trabalhos inacabados da máquina de escrever, até um recorte de um dos primeiros textos que ele publicou num diário e depois retrabalhou a página impressa usando lápis e caneta. Havia também cadernos de capa dura, provas tipográficas e assim por diante, o acervo de uma produtiva vida literária.

Seamus Heaney, aqui em 1993, era um dos principais poetas do mundo. Foto: Irish Independent, via Associated Press

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Agora, esse acervo e outras fontes foram usadas como ingredientes para a criação de um menu degustação de Heaney, com obras que vão da juventude à velhice, na exposição Listen Now Again (Ouça agora novamente), que será abrigada por três anos num espaço cultural do Banco da Irlanda em College Green, Dublin.

Na época da doação, Heaney tinha 72 anos e era um bardo de presença global, um poeta premiado com o Nobel que estava entre os principais da sua época. Mas era também o disciplinado filho mais velho de uma propriedade rural em County Derry, Irlanda do Norte, que transportou as caixas sozinho até a biblioteca. 

"Elas encheram o porta-malas de um carro de passeio, e ainda sobraram duas no banco traseiro", lembra Mick Heaney, um filho que o ajudou naquele dia. "Foi uma transação bastante prosaica".

Heaney teceu eloquência e falsa modéstia num fio único que transpassou toda a sua vida pública. É o mesmo fio que costura a exposição, desde a entrada - um círculo de pilares que evoca os altares de pedra do neolítico, decorados com momentos da biografia e da obra de Heaney - até a saída, onde as últimas palavras de Heaney, pintadas por um artista de rua, são projetadas num edifício residencial de Dublin ("Não tenha medo", diz a inscrição, uma tradução de Noli timere, mensagem em latim que ele enviou à mulher no dia 30 de agosto de 2013, enquanto esperava uma cirurgia de reconstituição da aorta; ele morreu antes de ser operado).

A exposição é composta por cerca de 100 peças, às quais confere um verniz multimídia com leituras em áudio, vídeo e telas que mostram o progresso das revisões num piscar de olhos digital.

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A voz e a visão de Heaney criaram poesia a partir da colheita de amoras e rituais de sacrifício; de batatas descascadas num balde e viagens épicas após a morte; de um vislumbre da mulher mergulhando na piscina e o puxar de uma pipa no céu - "a tensa pele de um tambor, uma braçada de joio ao vento" - enquanto entregava a linha aos filhos. Coloque-se aqui, diante de mim e tome o fio. A exposição mostra as engrenagens do seu processo de composição de versos. Escrevendo na margem de um recorte de jornal, Heaney reforçou uma versão de "Postscript" publicada pela primeira vez no Irish Times: A superfície de um lago de pedra é atingida Pelo relâmpago branco de uma revoada de cisnes Que se tornou: A superfície de um lago de pedra é iluminada Pelo relâmpago terreno de uma revoada de cisnes

Escrevendo num recorte de jornal, Heaney revisou uma versão de 'Postscript'. Foto: Seamus Heaney Literary Papers, Biblioteca Nacional da Irlanda

  Um dos mais celebrados poemas de Heaney, que ficou em primeiro lugar numa pesquisa de opinião do Irish Times a respeito dos versos preferidos dos leitores, captura o devaneio de um jovem e sua mãe enquanto preparam o jantar. Quando todos os demais estavam na Missa Eu era inteiro dela enquanto descascávamos batatas… Descobrimos que esse é, na verdade, o caroço ao qual Heaney chegou depois de podar, desembaraçar e polir outras ideias.

Numa versão anterior, ele refletia também a respeito do relacionamento da mãe com uma tia solteira. Um verso perdido: Você recuava diante da língua dela, sempre ferindo, ferindo Um vídeo mostra a resposta da Irlanda à morte de Heaney, aos 74 anos. "O país perdeu um dos seus melhores", diz uma carta ao Irish Times.

Uma câmera mostra uma multidão de 80 mil pessoas no Croke Park, de Dublin, aguardando o pontapé inicial de uma partida de futebol, dois dias após a morte dele. No sistema de som, ouve-se: "Gostaríamos de marcar a partida de um de nossos grandes ícones literários, Seamus Heaney". Os aplausos ecoaram, evoluindo para uma ovação prolongada.

Convidados a observar o silêncio em homenagem à morte de Heaney, a multidão celebrou sua vida com um rugido.

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