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Vida em Vênus? O que sabemos ficou um pouco mais confuso

Apesar das dúvidas de muitos cientistas, uma equipe de pesquisadores que afirma ter detectado um gás incomum na atmosfera do planeta ainda está confiante nas suas descobertas

Por Kenneth Chang e Shannon Stirone
Atualização:

No ano passado, uma equipe de astrônomos fez uma afirmação de enorme repercussão, declarando ter descoberto uma prova convincente de que existe vida planando nas nuvens de Vênus. Se for verdade, isto seria surpreendente. As pessoas há muito tempo olham para o cosmos e se perguntam se existe alguma coisa viva lá fora. Uma resposta afirmativa indicaria que a vida não é algo raro no universo, mas comum.

A equipe de astrônomos, liderada por Jane Greaves, da Cardiff University, no País de Gales, não viu nenhum venusiano microscópico com seus telescópios na Terra. Mas, num estudo publicado na revista Nature Astronomy, os pesquisadores reportaram ter detectado uma molécula de um gás chamado fosfina e disseram que não havia nenhuma explicação plausível sobre como ela poderia ter se formado ali salvo com o resíduo de micróbios.

Concepção artística do que seria a missão Pioneer se aproximando de Vênus. Foto: ARC/NASA, left; Pioneer/ARC/NASA via The New York Times

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Passados alguns meses e depois de mudanças inesperadas e dúvidas perturbadoras, os cientistas não estão muito seguros quanto ao que fazer com os dados e o que significam. Eles podem desencadear uma retomada dos estudos sobre o planeta, que foram deixados de lado há décadas. Podem apontar para um vulcanismo exótico e novos quebra-cabeças geológicos. E até pode haver alienígenas no planeta. Ou absolutamente nada.

Greaves e seus colegas continuam seguros das suas descobertas mesmo tendo reduzido suas estimativas sobre a quantidade de fosfina existente ali. “Estou segura de que existe fosfina nas nuvens”, afirmou.

Clara Sousa-Silva, cientista do Center for Astrophysics em Cambridge, Massachusetts, membro do grupo que publicou o estudo na Nature Astronomy, afirmou: “Acho que a equipe, em geral, está confiante de ter encontrado fosfina ali, que o sinal é real e não há nenhuma explicação abiótica”. Mas, acrescentou, “todos nós temos muitas incertezas”.

No círculo mais amplo de cientistas planetários, muitos não estão convencidos, até incrédulos. Alguns entendem que o sinal é apenas um ruído ou seria explicado pelo dióxido de enxofre, substância que se sabe que existe na atmosfera de Vênus. Para eles, não há até agora nenhuma evidência convincente de gás fosfina – muito menos micróbios que a produzisse.

“Seja o que for, é muito vago”, disse Ignas Snellen, astrônomo da Leiden University, na Holanda. E se o sinal é vago, afirmou, “não se sabe claramente se é real, e caso seja real não sabemos se é fosfina ou não”.

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O debate deve continuar sem solução por anos, do mesmo modo que as afirmações contestadas de evidências de vida em Marte.

“Quando a observação veio a público, as pessoas acharam interessante”, disse Martha S. Gilmore, professora de geologia na Wesleyan University em Middletown, Connecticut. A professora é a principal pesquisadora de um estudo que propôs à Nasa uma ambiciosa missão “robótica” a Vênus que incluiria um dirigível voando através das nuvens durante 60 dias.

“Estamos descrentes. Mas, pessoalmente, não queremos rejeitar totalmente essa observação”.

A superfície de Vênus hoje é infernal, onde as temperaturas são superiores a 420 graus celsius. Mas no início da história do sistema solar, o planeta poderia ter sido muito similar à Terra de hoje, com oceanos e um clima moderado. Ao que parece, nessa era, Marte, que agora é frio e seco, também possuía água circulando na sua superfície.

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“Potencialmente, há quatro bilhões de anos, tínhamos ambientes habitáveis em Vênus, Terra e Marte”, disse Dirk Schulze-Makuk, professor da Technical University em Berlim, Alemanha. “E sabemos que ainda há uma biosfera pujante, viável, em nosso planeta. Em Vênus, ficou excessivamente quente. E em Marte, frio demais”.

Mas a vida, quando surge, parece subsistir resolutamente em ambientes adversos. “Potencialmente, em nichos ambientais, pode existir vida microbiana”, disse o professor.

No caso de Marte, alguns cientistas acham ser possível existir vida embaixo da terra, nas rochas. Mas a subsuperfície de Vênus é quente demais, acrescentou o professor, que há duas décadas investigou se algumas partes desse planeta seriam ainda habitáveis.

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Por outro lado, disse ele, a vida em Vênus pode ter mudado para as nuvens. A cinquenta quilômetros acima da superfície as temperaturas são mais baixas, em torno de 30 graus celsius. Os micróbios nessa parte da atmosfera planariam durante vários meses, tempo suficiente para se reproduzirem e manterem uma população viável.

Mas mesmo as nuvens não são um lugar sereno, benigno. Estão repletas de gotículas de ácido sulfúrico e banhadas pela radiação ultravioleta do sol. E é um lugar seco, com apenas salpicos de água, um ingrediente essencial para a vida como a conhecemos.

Um mosaico colorizadoda superfície de Vênus, visto através de suas nuvens pela espaçonave Magellan no início dos anos 1990. Foto: USGS Astrogeology Science Center via The New York Times

Mas se este é um ambiente em que os micróbios teriam de sobreviver, é possível que tenham evoluído até este ponto.

A fosfina é uma molécula simples – uma pirâmide de três átomos de hidrogênio ligada a um átomo de fósforo. Mas seria necessária uma energia considerável para os átomos se juntarem e as condições propícias para essa reação química não parece existir na atmosfera de Vênus.

A fosfina pode ser criada no calor e a forte pressão do interior de Vênus. Mesmo com quantidades menores de fosfina que o grupo de Greaves agora calcula, seria algo inesperado e surpreendente se as erupções vulcânicas de Vênus se tornassem violentamente volumosas a ponto de lançar fosfina suficiente a ponto de ser detectada nas nuvens a uma altura de mais de 48 quilômetros, como o grupo afirma.

“Não podemos facilmente aceitar ou descartar o vulcanismo para explicar esta nova, reduzida abundância de fosfina”, disse Paul Byrne, professor de ciência planetária na universidade estadual da Carolina do Norte, em Raleigh. Segundo ele, há muitas incógnitas sobre o planeta e seu sistema geológico. “Provavelmente não se trata de vulcanismo. Mas também não podemos afirmar com certeza”.

Na Terra, a fosfina é produzida por micróbios que se desenvolvem sem oxigênio. É encontrada nos nossos intestinos, nas fezes de texugos e pinguins e em alguns vermes marinhos que vivem no fundo do mar.

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Em 2017, Greaves encontrou indicações desse gás usando o Telescópio James Clerk Maxwell no Havaí. Diferentes moléculas absorvem e emitem comprimentos de onda de luz específicos, que formam um datilograma que permite aos cientistas as identificarem de longe. As medidas desse comprimento de onda resultaram no que os cientistas chamam de linha de absorção no comprimento de onda que corresponde à fosfina. E calcularam que havia 20 partes por bilhão do gás naquela parte da atmosfera de Vênus.

Observações de acompanhamento em 2019 foram feitas com uso de um radiotelescópio no Chile, o Atacama Large Millimeter Array, ou ALMA, que possui 66 antenas. E foi observada a mesma linha escura correspondente à fosfina, embora em concentrações menores, cerca de 10 partes por bilhão.

Outros cientistas, como Snellen, não consideram essa análise, ou mesmo as sugestões de uma fonte biológica, convincentes.

Os dados fornecidos pelo ALMA, que registrou o brilho da luz de Vênus numa faixa de comprimentos de onda, continham muitos movimentos e o único que correspondia à fosfina, que é um gás, não era particularmente maior do que os outros. Greaves e seus colegas usaram uma técnica chamada polinomial para subtrair o que acreditavam ser ruído e separar o que seria o sinal de fosfina. A técnica é comum, mas os investigadores usaram a técnica polinomial com um número grande – 12 – de variáveis. O que, segundo os críticos, gerou um sinal falso.

As antenas ALMA no topo do planalto Chajnantor nos Andes chilenos. Foto: Clem & Adri Bacri-Normier European Southern Observatory via The New York Times

“Se o seu sinal não for mais forte do que o ruído, então você não terá sucesso”, disse Snellen.

Outros cientistas refutam também, dizendo que mesmo que houvesse um sinal, muito provavelmente ele viria do dióxido de enxofre, que absorve luz quase no mesmo comprimento de onda.

Enquanto os cientistas debatiam, surgiu uma surpresa: o observatório ALMA havia fornecido dados calibrados incorretamente para Greaves e continham ruídos espúrios. Durante semanas, os pesquisadores esperaram indecisos.

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Quando os dados reprocessados foram disponibilizados em novembro, os ruídos em torno da linha de absorção de fosfina haviam diminuído, mas agora também parecia haver menos gás fosfina, cerca de uma parte por bilhão, e em alguns locais chegavam até cinco partes por bilhão.

Bryan Butler, astrônomo do National Radio Astronomy Observatory, em Socorro, Novo México, disse que ele e outros colegas examinaram os mesmos dados do ALMA, tanto as versões originais como as reprocessadas, e não conseguiram ver nenhum sinal de fosfina.

“Eles afirmam que ainda vêem e nós afirmamos que não há nada ali. Da perspectiva dos cientistas, fixados estritamente em dados, ninguém os apoia porque ninguém conseguiu reproduzir os resultados a que eles chegaram”, disse Butler.

De acordo com novo estudo realizado por uma equipe de astrônomos liderada por Victoria S. Meadows, da Universidade de Washington, um modelo mais detalhado da atmosfera de Vênus desenvolvido nos anos 1990 mostra que a camada de gás fosfina na atmosfera do planeta nem chegaria a criar uma linha de absorção detectável da Terra. Para a equipe, a fosfina teria de estar cerca de 25 quilômetros de altura na atmosfera para absorver a luz. A pesquisa será publicada no The Astrophysical Journal Letters.

“O que estamos mostrando é que o gás acima basicamente não esfria a ponto de ser absorvido enquanto não chegar a 75 ou 80 quilômetros. Ou seja, bem acima das nuvens”, disse Meadows.

O debate continuará no impasse enquanto não houver novas observações. Mas a pandemia levou ao fechamento do ALMA, no Chile, e também do Stratospheric Observatory for Infrared Astronomy, ou SOFIA, um telescópio a bordo de um 747 modificado que estuda a luz infravermelha do alto da atmosfera da Terra.

O dirigível que faria parte da missão proposta por Gilmore solucionaria as incertezas, coletando diretamente amostras de ar. E poderia encontrar não apenas fosfina, mas também moléculas de carbono de alguns micróbios.

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“Nós temos realmente de estar nas nuvens, porque é o habitat que, se presume, suporta a vida”, disse Gilmore.

Cientistas planetários estão no processo de reunir suas recomendações à Nasa para missões prioritárias. Existem muitos lugares interessantes para estudar e a Nasa normalmente realiza apenas uma missão de grande envergadura, que leva mais tempo para ser montada, e uma para Vênus não seria levada a cabo antes de 2031, no mínimo.

A Nasa também vem analisando algumas missões menores a Vênus dentro do seu programa Discovery, abrindo um concurso em que os cientistas propõem missões com um limite de gastos de até US$ 500 milhões.

Uma delas, chamada DAVINCI+, seria uma versão para o século 21 do projeto Pioneer Venus. E ela buscaria sinais de fosfina, embora em apenas um lugar e uma vez. A segunda proposta, VERITAS, consiste no envio de um orbitador que produziria imagens em alta resolução da superfície de Vênus. Não inclui nenhum instrumento para detecção de fosfina, mas pode ser adicionado.

E pelo menos uma empresa privada, a Rocket Lab, pretende enviar uma pequena sonda para estudar Vênus nos próximos anos.

“Futuras observações estão garantidas”, disse Butler, do National Radio Astronomy Observatory. “Não há nada que você possa apontar para dizer, ‘Sim, sem dúvida vimos fosfina em Vênus’. Mas é algo tentador”.

“Eu não apostaria todas as minhas economias na tese de que não existe fosfina ali”. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

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