Do bom vinho, um caminho direto para as maravilhas da natureza

Na interconectividade de todas as coisas, incluindo um copo de vinho, pode-se ver a beleza surpreendente da natureza ou a mão do criador

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Por Eric Asimov
Atualização:

No ano passado, um amigo fez uma pergunta que eu nunca havia considerado antes: durante os muitos anos que escrevi sobre vinho, qual foi a melhor coisa que o trabalho me deu? Respondi quase por reflexo: como nova-iorquino que passou a maior parte da vida morando em Manhattan, o vinho me proporcionou uma conexão com a natureza que eu provavelmente nunca teria experimentado de outra maneira.

Pensei muito sobre o tema nas últimas semanas, pois a pandemia de coronavírus está conosco há meses. Na maior parte do tempo, estive no meu apartamento, longe das vinhas, e menos ainda de qualquer coisa que possa ser razoavelmente interpretada como selvagem ou natural, como uma floresta ou o oceano. Sinto a diferença, tanto física como emocionalmente.

Para este morador da cidade, o vinho proporcionou a abertura para uma maior compreensão da alimentação e da agricultura, e seu equilíbrio precário Foto: Brian Britigan The New York Times

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Meu amigo se surpreendeu com minha resposta. Ele presumiu que eu citaria os maravilhosos vinhos inacessíveis que pude beber ou, talvez, as muitas personalidades interessantes do mundo do vinho com quem convivi ao longo do tempo. Esses também foram benefícios maravilhosos. Se eu não estivesse representando os leitores do The New York Times, nunca teria tido a oportunidade de beber, digamos, um bom vinho antigo de uvas colhidas em 1846, ou mesmo experimentar 16 safras do Château Lafite-Rothschild, que remontam a 1868.

Sei também que minha compreensão do vinho não seria tão rica sem ter tido a oportunidade de passar tempo com pessoas tão diversas quanto Jean-François Fillastre, um enólogo de Bordeaux pouco conhecido; Paul Draper, a força orientadora de longa data da californiana Ridge Vineyards; Bartolo Mascarello, um defensor incansável das práticas ancestrais do Barolo; Maria José López de Heredia, uma defensora igualmente firme da tradicional Rioja, e tantas outras.

Mas nada no vinho me afetou tão profundamente quanto observar a íntima relação que os produtores esclarecidos mantêm com a terra que cultivam. O que aprendi com eles moldou minha visão em muitas facetas importantes da minha vida, desde os alimentos e vinhos que compro até as roupas que uso, e o que penso sobre as mudanças climáticas e as questões políticas.

Também ficou claro para mim quão pouco sabemos do mundo natural, particularmente os elos complexos e intrincados que governam o bem-estar de um ecossistema saudável, desde a rede de vida microbiana no solo até a diversidade da vida vegetal, e a importância da vida animal até o predador do topo da cadeia.

Remover qualquer elo dessa cadeia complexa pode ter consequências devastadoras – para o solo, para o ar ou até para o sabor do vinho em sua taça. Mesmo algo aparentemente mundano, como erguer uma cerca que impeça o trânsito dos animais ou desvie o fluxo natural da água, pode ocasionar um efeito dominó muito além do previsto.

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Eu não teria compreendido nenhuma dessas conexões caso não tivesse passado um tempo percorrendo a terra com pessoas como Deirdre Heekin, da La Garagista, em Vermont; Mimi Casteel, da Hope Well, no Oregon; Andy Brennan, que faz sidra em Catskills, no interior de Nova York; Steve Matthiasson, em Napa Valley; ou Arianna Occhipinti, na região de Vittoria, na Sicília.

Ao longo do século 20, a tendência na agricultura – o que hoje chamamos de agricultura convencional – foi o isolamento. Vastas extensões de milho, de soja, de trigo e até de uva substituíram as fazendas de subsistência, em que uma variedade de vegetais, frutas, grãos e animais coexistia.

Essas policulturas se expandiam para áreas selvagens, abrigando insetos benéficos, pássaros e outros animais. Teoricamente, isso promoveu uma diversidade biológica saudável, na qual pragas e doenças eram controladas naturalmente e não por meios artificiais.

As monoculturas isoladas, que passaram a dominar a agricultura moderna, carecem do tipo de relações simbióticas entre espécies que mantêm os ecossistemas saudáveis. Essas construções artificiais interromperam a ordem natural, que foi substituída por inseticidas, herbicidas, fertilizantes químicos e outras muletas modernas. Um ambiente resistente se torna frágil e deve ser continuamente sustentado.

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O efeito da agricultura moderna é sentido em toda a cadeia alimentar. Milhões de animais crescem em um ambiente industrial prejudicial e devem ser preventivamente tratados com antibióticos e outros medicamentos para substituir as defesas naturais. Quando você examina as fontes de seus alimentos e dos vinhos e se conscientiza das concessões feitas quase inteiramente para fins comerciais, começa a analisar mais de perto o que exatamente está em seu copo e em seu prato.

Muitas pessoas compreendem com apenas uma mordida a diferença entre o tomate comercial e o orgânico, cultivado localmente e vendido em um mercado de agricultores. Podemos sentir facilmente a profundidade do sabor de um ovo de fazenda, ausente nos similares de supermercados comerciais. Por que alguém duvidaria que um vinho produzido cuidadosamente a partir de uvas cultivadas com consciência fosse superior ao vinho processado a partir de uvas cultivadas industrialmente?

Se você já caminhou por um vinhedo cultivado quimicamente, não importa quão bem cuidadas ou bonitas sejam as rosas que margeiam o local, você não pode deixar de ficar horrorizado com o solo cinzento e sem vida sob seus pés. Compare isso com as vinhas abundantes de Casteel ou Heekin, que fazem parte de ecossistemas saudáveis. Elas estimulam todos os sentidos, desde os sons e as imagens de pássaros e insetos até a suavidade do solo sob seus pés. Você certamente pode provar esse tipo de vinha no próprio vinho.

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É fácil escrever sobre vinho sem nenhum tipo de consciência da natureza. Você pode se sentar a uma mesa e provar centenas de vinhos, sem pensar na origem deles, além da garrafa. Muitas pessoas têm argumentado que muitos bons vinhos foram feitos a partir de uvas de cultivo químico, e isso é verdade. Mas a que custo? E esses vinhos não poderiam ser muito melhores se o material de origem tivesse mais profundidade, pureza e complexidade?

Uma conexão com a natureza promove o idealismo, o romance e a esperança. Isso coloca muitas pessoas em contato com Deus, se sua mente seguir esse caminho. Na interconectividade de todas as coisas, incluindo um copo de vinho, pode-se ver a beleza surpreendente da natureza ou a mão do criador. Quando você perde essa conexão com a natureza, tudo o que vê é uma taça.

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