O que se pode aprender (ou não) com o médico que foi o pioneiro da máscara

No início do século 20, Wu Lien-Teh contribuiu para mudar o curso de uma devastadora epidemia e promoveu o uso da máscara como um instrumento de saúde pública

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Por Wudan Yan
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No final de 1910, uma epidemia letal começou a se alastrar pelo nordeste da China, chegando até a grande cidade de Harbin. Dezenas de milhares de pessoas tossiam sangue, a pele coçava e ficava roxa. Todas morreram.

Este surto provocou o pânico no governo. Ninguém sabia que doença poderia causar estas mortes, e muito menos como controlá-la. Então as autoridades trouxeram para a Ásia um dos médicos mais preparados da época, Lien-Teh. Depois de realizar uma série de autópsias, ele descobriu a Yersinia pestis, uma bactéria semelhante à causadora da peste bubônica no Ocidente. Ele identificou a praga da Manchúria como uma moléstia respiratória e induziu todo mundo, principalmente os profissionais de saúde, a usarem máscaras.

O médico Wu Lien-Teh ajudou a mudar o curso de uma epidemia de peste na China no início do século 20 e promoveu uso de máscaras como ferramenta de saúde pública. Foto: Library of Congress via The New York Times

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As autoridades chinesas, preocupadas com o seu alerta, acrescentaram, ao uso da máscara, rigorosos lockdowns com a ajuda da polícia. Quatro meses depois, o médico foi novamente convocado, a epidemia havia sido derrotada. Embora em geral menosprezado nos países do Ocidente, Wu é reconhecido na história mundial como um pioneiro da saúde pública, por ter ajudado a mudar o curso de uma doença respiratória espalhada pelas gotículas da respiração ou da fala que poderia ter devastado a China no início do século 20, e inclusive espalhar-se muito além de suas fronteiras.

Enquanto os chineses daquela época cumpriam as medidas impostas por estas estratégias, os profissionais de saúde dos Estados Unidos, e de outros países ocidentais, encontram grandes dificuldades para serem ouvidas pelos cidadãos durante a covid-19. A China também teve dificuldade no início, mas a memória institucional do país desde os surtos virais anteriores conseguiu inverter o curso da doença.

E enquanto muitos americanos abandonam o uso da máscara, querendo voltar à normalidade em regiões onde os riscos de contágio continuam elevados e hesitam em se vacinar, alguns especialistas em saúde pública observaram o sucesso de Wu, buscando lições para fazer frente não apenas à covid-19, mas também a epidemias futuras.

No entanto, alguns especialistas que estudaram Wu acreditam que estão sendo extraídas as lições erradas do seu legado: um único indivíduo não pode salvar uma nação. “Nem sempre podemos esperar por figuras históricas”, disse Alexandre White, sociólogo e historiador da medicina da Johns Hopkins de Baltimore. Ao contrário, ele e outros especialistas afirmam que países como os EUA precisam encarar a desigualdade dos próprios sistemas de saúde pública extremamente sobrecarregados para combater as ameaças à saúde.

Wu nasceu de imigrantes chineses no dia 10 de março de 1879, em Penang, uma ilha ao largo da costa do Arquipélago da Malásia, com o nome de Ngoh Lean Tuck. (Posteriormente, mudou o nome para Wu Lien-Teh, às vezes pronunciado Wu Liande.)

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Aos 17 anos, Wu ganhou uma bolsa de estudos no Emmanuel College, na Inglaterra, e posteriormente estudou medicina no St. Mary’s Hospital de Londres. Como parte do seu currículo, ele se aperfeiçoou em moléstias infecciosas na Faculdade de Medicina Tropical de Liverpool e no Instituto Pasteur de Paris.

Em 1903, quando retornou à Malásia, Wu era uma das primeiras pessoas de ascendência chinesa a formar-se em medicina no Ocidente.

Em maio de 1908, Wu e a esposa foram para a China, onde ele foi nomeado vice-diretor do Imperial Army College nas proximidades de Pequim, o que lhe deu condições para investigar quando as pessoas começaram a morrer de uma doença desconhecida na Manchúria.

Trabalhadores da saúde preparam um corpo de uma vítima da peste na China, em 1911. Foto: Harvard University, Countway Library of Medicine via The New York Times

Wu estava entrando em um campo em que especialistas como ele eram extremamente procurados e escassos. Na época, a China se encontrava mergulhada em uma profunda agitação política: a Rússia e o Japão competiam pelo controle da Manchúria e ambas viam a epidemia como uma oportunidade para conseguir os próprios objetivos. Na época, os países do Ocidente consideravam em geral a China como “o doente do Leste”, um país castigado pelas doenças, pelo vício do ópio e por um governo ineficiente.

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Os historiadores que estudam a China afirmam que o governo aceitou e incorporou o rótulo. Mas quando Wu chegou, ele detinha influência social e política para ser um catalisador de mudança.

Wu muitas vezes é saudado como o “homem por trás da máscara”, o inventor do uso da proteção facial para prevenir o alastrar-se de doenças respiratórias. Grande parte desta narrativa constou por sua vontade de sua autobiografia, disse Marta Hanson, historiadora da medicina no Johns Hopkins. Experimentos anteriores com a máscara existiam em outros países, e alguns chineses já estavam usando respiradores de estilo japonês antes mesmo da chegada de Wu em Harbin.

Depois que a epidemia pôde ser controlada na China, Wu hospedou a Conferência Internacional sobre a Epidemia. Respiradores e máscaras foram os principais temas das conversações e muitos estudiosos ocidentais acreditaram que podiam realmente prevenir a doença.

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Embora as máscaras tenham se tornado um ponto de conflito político nos Estados Unidos e em toda parte durante a epidemia da gripe espanhola, a ideia de usá-las persistiu na China, e as máscaras de gaze tornaram-se um importante instrumento na agenda política do Partido Nacionalista, que subiu em seguida ao poder, em 1928. As autoridades da área da saúde pública recomendaram a todos os cidadãos que usassem máscaras de gaze nos espaços públicos nos surtos de meningite ou de cólera.

Na época, as máscaras tornaram-se um símbolo da modernidade e higiene, contribuindo para uma maior aceitação do seu uso hoje, na China, disse Hanson. No início do século 21, a epidemia da SARS mais uma vez trouxe a necessidade das máscaras e de outras intervenções em termos de saúde pública na China e em outros países do Leste asiático.

Em 1930, Wu foi nomeado diretor de uma nova organização de saúde pública. Mas depois que os japoneses invadiram o norte da China, em 1937, e a sua casa em Xangai foi bombardeada, ele procurou refúgio na Malásia, onde nascera. Lá, encerrou a sua carreira como médico da família, e morreu em 1960, aos 80 anos.

Os historiadores da medicina e especialistas em saúde pública têm algumas teorias para explicar o sucesso de Wu em convencer as autoridades chinesas para controlar a epidemia.

Um fator que provavelmente ajudou Wu, afirmam, é o fato de ele tornar populares e acessíveis as máscaras. Uma estratégia semelhante foi adotada durante a pandemia do coronavírus em Hong Kong, que ofereceu uma máscara gratuita reutilizável a cada morador e instalou quiosque em lugares públicos para a sua distribuição.

Equipe de desinfecção em trabalha durante a Peste Manchuriana de 1910 a 1911. Foto: Harvard University, Countway Library of Medicine via The New York Times

Os países que ofereceram apoio significativo aos seus cidadãos para que cumprissem os mandamentos da saúde pública durante esta pandemia, em geral se saíram melhor do que aqueles que deixaram que os próprios indivíduos providenciassem as mesmas medidas, disse White da Johns Hopkins.

Outros afirmam que a saúde pública está intrinsecamente ligada à legitimidade do Estado que a promove. Na virada do século 20, a China estava em perigo, disse Hanson. Wu ajudou a tirar o país de um período tumultuado, e a adoção de medidas de saúde pública conferiu maior legitimidade ao país.

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Como a atual pandemia revelou deficiências nos sistemas de saúde pública dos Estados Unidos, Grã-Bretanha e em outros países ocidentais, alguns especialistas acreditam que ela poderá ser um catalisador de mudança.

“Desde meados do século 19, o Ocidente em geral considerou a capacidade de controlar doenças infecciosas uma marca de sua superioridade em termos de civilização diante do resto do mundo”, afirmou White. Se a China era vista como o doente do mundo na época, alguns comentaristas agora tentam aplicar o mesmo rótulo aos Estados Unidos.

Ruth Rogaski, historiadora da medicina da Universidade Vanderbilt, que se especializou no estudo da dinastia Qing e na China moderna, acredita que a crise do coronavírus oferece uma oportunidade de reflexão, que pode ser muito motivadora.

“As epidemias podem servir de pontos de virada”, afirmou. “Oportunidades para refletir, reequipar e até mesmo revolucionar as estratégias no campo da saúde.” / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

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