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A política identitária

Identificação pessoal com um candidato é mais importante do que suas propostas, coerência, partido e passado

colunista convidado
Foto do author Lourival Sant'Anna
Por Lourival Sant'Anna
Atualização:

“Infeliz o país que precisa de heróis.” Com essa frase, na peça de Bertolt Brecht, Galileu defende a decisão de negar sua descoberta de que a Terra gira em torno do Sol para não ser queimado na fogueira da Igreja Católica. A palavra “heróis” poderia ser trocada por “salvadores” ou “pais”.

Putin cumprimenta apoiadores após a Comissão Eleitoral Central confirmar sua vitória em eleição presidencial Foto: EFE/EPA/YURI KOCHETKOV

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Estou voltando das eleições na Rússia. Mais uma vez, Vladimir Putin afirmou o seu poder, nos papéis de salvador, pai, herói e “macho”. Ele convenceu os russos de que seu país é uma “fortaleza cercada” de inimigos, dos terroristas islâmicos ao Ocidente. Só ele é capaz de protegê-la.

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Antes da Rússia, eu estava na Itália, onde os dois partidos mais bem-sucedidos nas eleições, o Movimento 5 Estrelas (M5S) e a Liga, cada um a sua maneira, conquistaram seus votos prometendo proteger a Itália do livre-comércio, da União Europeia e da imigração. 

Donald Trump mantém seus seguidores em transe, com a noção de que só ele é capaz de defender os EUA das ameaças externas, com tarifas, um muro, um arsenal incomparável, seu patriotismo e esperteza.

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O ex-presidente Lula, literalmente, se atribuiu o papel de “pai” do Brasil, e à sucessora por ele escolhida, Dilma Rousseff, o de “mãe”. As pesquisas lhe dão mais de um terço da preferência do eleitorado.

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Populismo.

Em todos esses casos, os eleitores se dispõem a perdoar grandes defeitos, visíveis até para eles. Putin está no poder há 18 anos, eliminando toda oposição real e rodeado de oligarcas (o termo usado na Rússia) que sugam as riquezas do país.

Trump rompeu a tradição dos presidentes americanos de divulgar sua declaração de imposto de renda. Seus mais próximos colaboradores mantiveram relações suspeitas, quando não ilegais, com a Rússia, um dos principais adversários dos EUA. É errático, incoerente e confuso nas suas políticas de governo, além de ter atitudes discriminatórias num nível inaceitável para grande parte da sociedade americana.

O comediante Beppe Grillo, líder do M5S, foi condenado por causar a morte de três pessoas, incluindo uma criança de 9 anos, quando dirigia numa estrada militar, proibida para civis. Algumas de suas posições refletem a mesma irresponsabilidade. 

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Matteo Salvini, que encabeça a chapa da Liga, conquistou primeiro o eleitorado do norte, explorando seu menosprezo pelos italianos do sul, e agora se afirmou como líder nacional, unindo todos os italianos contra os imigrantes. Pouco antes da eleição, um ex-candidato a vereador pela Liga fez 30 disparos contra africanos, ferindo 6.

Seguidores.

Todos esses candidatos derrotaram adversários que têm uma abordagem racional dos problemas e das soluções, que respeitam os limites da realidade e da ética. Não são pessoas perfeitas, até porque isso não existe, mas são muito mais coerentes, sobretudo quando comparadas com seus rivais.

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Os seguidores dos populistas não são guiados pela razão. Isso não quer dizer que eles não sejam pessoas racionais ou que não tenham razões para fazer essas escolhas. Mas que a força determinante por trás dessas escolhas é da ordem do emocional. 

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É o que vem sendo chamado de “política identitária”: a identificação pessoal com o candidato e com outros de seus seguidores é mais importante do que suas propostas, coerência, partido e passado. Argumentos, estudos, experiências que provem que as propostas deles não podem ser cumpridas ou levarão o país ao desastre têm menos importância que o fascínio que suas figuras exercem.

Ao longo da história, a emoção tomou conta da política em tempos de agudas transformações. As pessoas se sentem vulneráveis, confusas, e buscam um salvador, com uma mensagem simples, que lhes devolva a confiança perdida. A política vai para o âmbito da fé. 

É nesse momento que nos encontramos novamente. Dessa vez, com ferramentas de manipulação mais eficazes do que nunca, beneficiadas pelo modo como os eleitores escancaram seus perfis nas plataformas digitais. 

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