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'Brasil também precisa discutir papel do Estado na economia', diz Rubens Barbosa

Ex-embaixador do Brasil diz que discurso de Joe Biden no Congresso aponta reversão das políticas econômica e social dos EUA e tem muito a ensinar sobre o caminho para a recuperação no pós-pandemia

Foto do author Renato Vasconcelos
Por Renato Vasconcelos
Atualização:

O discurso do presidente Joe Biden ao Congresso americano nessa quarta-feira, 29, apresentou uma reversão das políticas econômicas e sociais dos Estados Unidos na opinião do ex-embaixador do Brasil em Washington Rubens Barbosa. De acordo com o diplomata, e atualmente presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRIce), o governo do democrata está dando uma nova dimensão ao papel do Estado na economia, o que deve ser encarado também pelo Brasil.

"Os planos todos, do FMI e demais atores, focam na contenção da dívida pública, no equilíbrio fiscal, mas Biden está falando outra coisa. Ele fala em prestar atenção na classe média, na necessidade do país crescer para fazer frente à competição externa e no investimento estatal pesado. Isso não é mais Estado mínimo, é Estado é grande. Teremos que discutir aqui no Brasil essa questão do papel do Estado na economia, à luz da atual política econômica", afirmou Barbosa em entrevista ao Estadão.

O presidente Joe Biden faz o discurso de seus primeiros 100 dias de governo, acompanhado pela vice-presiednte Kamala Harris e a presidente da Câmara Nancy Pelosi Foto: Chip Somodevillaat/Pool via Reuters

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Apesar do discurso apontar principalmente para questões internas dos EUA, o embaixador aponta que oportunidades devem se abrir para o Brasil e para quem estiver mais atento. E não observar isso - caso as políticas de Biden cheguem as últimas consequências - pode causar prejuízos.

Leia a entrevista

Qual foi a principal mensagem do discurso do presidente Biden ao Congresso americano?

Biden indicou uma reversão nas políticas econômica e social americana, em comparação ao governo Trump. Sobretudo quando avaliamos a importância que ele deu à questão do papel do Estado. A ambição nos planos econômicos, a taxação dos mais ricos... tudo isso é parte de uma mudança profunda, e foram pontos enfatizados durante todo o discurso. Ele também dá muita ênfase à volta ao crescimento depois da crise - depois de descrever o que ele entende por crise, que são a pandemia, a violência, o racismo, os ataques à democracia - e mostra as oportunidades. A missão dele é tirar o país da crise e abrir oportunidades.

Pelo fato de ser um discurso no Congresso, direcionado aos americanos, a fala do presidente foi muito voltada ao público interno. Quais as principais sinalizações em temas de política interna?

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Um aspecto importante foi o apelo que ele faz ao Congresso. Na campanha eleitoral, Biden pregou muito a união, que ele queria governar com todo mundo, e você vê que nesses 100 dias ele governou sozinho, porque os Republicanos não dão alívio. Esse apelo agora é importante, porque tem algumas propostas, como dois dos grandes planos dele, que ainda não foram votados.

Ele também deu um peso muito grande à classe média. O Plano da Família, o Plano do Emprego, tudo isso reforça o apoio. E isso é por causa do eleitor do Trump, que costuma ser dessa classe. Permeia, em todo o discurso dele, além de aspectos de política interna, certo nacionalismo, quando ele fala em "buy americans" (comprar produtos americanos). Ele acentuou bastante esse ponto.

Isso demonstra que o discurso tem interesse eleitoral?

Tem o interesse de esvaziar os apoiadores do Trump. Pode ter relação, se ele estiver pensando nas eleições de "Midterm" (para o Congresso, em 2022), porque os democratas terão que brigar para manter o controle do Senado, o que é muito difícil, porque neste momento já está dividido em 50%. É possível que tenha havido essa ênfase na classe média, pensando em manter esse controle.

Emendas parlamentares voltaram a ser usadas no Congresso dos Estados Unidos em 2021; uso instrumento é regulado por normas rígidas no país. Foto: Chip Somodevilla / EFE

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E quais os principais temas de política externa?

A parte externa ficou diminuída, porque a força dos problemas internos é tão grande, que quando se referiu a parte externa, ele fala da volta da liderança americana no cenário internacional, perdida por Trump, e se referiu a poucas coisas: a retirada das tropas do Afeganistão, se referiu à Rússia criticamente, se referiu à cúpula do clima.

No entanto, durante todo o discurso, perpassa a sombra da China. Quando Biden fala em emprego, ele fala da China; quando ele fala de vacina, fala da China; quando ele fala em melhorar a produtividade, ele tá falando da China. Está embutido no discurso.

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O presidente chegou a mencionar a oposição dos EUA a 'autocracias'

Quando ele fala em autocracias, ele está falando da China. Ele diz que os governos autocráticos não vão prevalecer sobre os governos democráticos, mas ele está pensando aí na China, não está pensando em ninguém mais. Está pensando, no macro, na competição China e EUA.

Qual assunto tratado é de interesse direto do Brasil?

Diretamente, interessa ao Brasil a confirmação feita por Biden quando fala em distribuir vacinas. Esse é um pedido que o País já fez, mas teremos que acompanhar Brasília para verificar o avanço da questão.

Outra coisa é o apelo que o presidente fez ao Congresso para aprovar essa lei de imigração, da qual a vice-presidente Kamala Harris vai ficar incumbida. Isso é importante, por causa dos brasileiros que estão nos Estados Unidos.

E o que precisamos captar sobre todas as medidas anunciadas?

O discurso apresenta uma revisão da política econômica americana, em que o Estado passa a ter um papel central. E isso é uma revolução. 

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Os planos todos, do FMI e demais, focam na contenção da dívida pública, no equilíbrio fiscal, mas Biden está falando outra coisa. Ele fala em prestar atenção na classe média, na necessidade do país crescer para fazer frente à competição externa e no investimento estatal pesado. Isso não é mais Estado mínimo, é Estado é grande. Teremos que discutir aqui no Brasil essa questão do papel do Estado na economia, à luz da atual política econômica.

Outra coisa que ele mencionou , que temos que pensar aqui no Brasil, é a questão da taxação. Ele defendeu que parte dos recursos para esses planos venha através da taxação de grandes empresas e dos mais ricos. A classe média, com renda de até 400 mil dólares, está fora. Para eles, não vai ter aumento de imposto. Quem vai pagar parte desse esforço tremendo do governo americano são os ricos, a classe média alta e as empresas. A questão do papel do Estado na economia vai ter que ser discutida.

Essa tendência pode chegar ao Brasil. Há um início de discussão nesse sentido com os debates sobre o auxílio emergencial, mas para fazer uma revisão do papel do Estado é preciso mudar conceitualmente os parâmetros que formam nossa posição. Toda a lógica atual, de teto de gastos, contenção de dívidas e equilíbrio fiscal estão em uma filosofia anterior a que Biden apresentou.

Rubens Barbosa,ex-embaixador do Brasil em Washington Foto: Amanda Perobelli/Estadão

No campo econômico, como podemos nos beneficiar dessa nova linha política?

Há uma projeção do Fundo Monetário de crescimento de mais de 6% da economia americana neste ano, e isso tem um impacto global de demanda. A lógica do "buy americans" anunciada por Biden não é imediata. Eles vão ter que fazer transformações, e no momento inicial vai haver uma demanda maior. O Brasil pode se beneficiar disso também, inclusive pela onda global, com crescimento de China e União Europeia também.

Porém, tanto no caso dos EUA quanto no da China, falta um estudo de mercado para encontrar nichos de mercado. A economia aqui está tão desorganizada que ninguém está pensando nisso. Essa coisa do "buy americans" vai gerar problemas para nós lá na frente, porque, se eles levarem até o fim essa política, vai haver restrição nas importações, e alguns produtos vão precisar de alguma proteção ou subsídio. Está havendo uma mudança geral, com situações totalmente novas, e na minha visão, aqui no Brasil estamos muito lentos para reagir a essas transformações que estão ocorrendo no mundo.

É possível dizer então que este cenário cria uma janela de oportunidades imediata, e quem perder terá dificuldades?

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Eu diria que temos que começar a ver as oportunidades do curto prazo que vão surgir com a reativação da economia americana, e ver as dificuldades de médio prazo desse projeto, que pode restringir a exportação de vários produtos, pode haver a adoção de políticas protecionistas. O "buy americans" não tem efeito imediato. Ele vai ter efeito daqui a pelo menos um ano. Porém é um cenário totalmente novo, por causa da crise, e por causa dessa mudança reformista. Biden, que era apontado como um moderado, está se mostrando um grande reformador da economia americana.

A ideia de que ele seria um "presidente de transição" não está se confirmando

Não, não. Parecia que ele seria parte de uma transição, mas a crise da pandemia acelerou a necessidade dessas mudanças radicais, e ele está aproveitando. Para a área da infraestrutura, para dar emprego...

Considerando todas essas mudanças apresentadas no discurso de ontem e o cenário político e econômico brasileiro, o senhor julga ser possível reatar o relacionamento harmônico com os EUA sob a gestão de Biden?

As relações Brasil e Estados Unidos, até aqui, estão muito boas. O chanceler Carlos França relatou ontem (quarta) na Câmara que ele e Salles vão participar de uma conversa telefônica com o John Kerry na sexta-feira. Eu acho que os EUA estão adotando uma atitude muito conciliadora com o Brasil. Teve a troca de cartas entre Biden e Bolsonaro... A ênfase é cooperação, não tem crise na relação. No futuro poderá haver, por causa de temas ligados ao clima, mas agora não. Todas as áreas estão avançando no momento.

Agora, para você ampliar a relação, ter novos acordos comerciais e na área de Defesa, por exemplo, vai depender da agenda de meio ambiente. Essa que é a prioridade do governo americano. O clima está no centro da política econômica, da política externa, da política de defesa. Não se pode falar em reatar, nada foi suspenso. Então a relação hoje está normal, com ênfase na cooperação. Mas aí você tem a questão do clima, se o Brasil não cumprir o que o próprio presidente falou sobre reduzir o desmatamento e tudo mais. Aí sim você pode ter um problema mais sério. Não acredito que vá haver sanção, mas pode ter um atraso em outras áreas.