Intenção de acordo Aukus é dar trabalho a Pequim; leia a análise

A intenção do tratado entre os EUA, a Austrália e o Reino Unido é incomodar, provocar gastos, movimentar a diplomacia e mobilizar forças - enfim, dar trabalho ao governo de Pequim, um dos polos da nova Guerra Fria

PUBLICIDADE

5 min de leitura

Não, a ideia por trás do acordo militar Aukus não é dar à Austrália a possibilidade de lançar, de um submarino atômico submerso, um míssil nuclear contra alvos estratégicos no território da China. Ou mesmo a capacidade de disparar na direção dos novos e formidáveis porta-aviões chineses um punhado de mísseis de cruzeiro Tomahawk com suas cargas explosivas de 450 kg. Não, nada disso.

A intenção do tratado entre os EUA, a Austrália e o Reino Unido é incomodar, provocar gastos, movimentar a diplomacia e mobilizar forças - enfim, dar trabalho ao governo de Pequim, um dos polos da nova Guerra Fria.

Formalmente, a expectativa é a de que a Marinha australiana possa assumir mais efetivamente missões de reconhecimento, vigilância e patrulha de longo alcance, nas vastas porções oceânicas que cercam o continente-ilha. É uma zona fundamental de interesse chinês.

Um submarino a diesel da Marinha da Austrália perto do porto de Sydney Foto: Arquivo

O Aukus permitirá a transferência completa da avançada tecnologia americana na construção de submarinos de ataque de propulsão nuclear. É um procedimento raro. Nos últimos 60 anos, só uma vez houve um processo tão amplo, resultado do compromisso bilateral dos EUA com o Reino Unido, que permitiu a entrada dos britânicos no restrito clube das potências atômicas no fim dos anos 50.

Os navios ainda não foram especificados, mas, de acordo com engenheiros navais dos dois principais estaleiros sob contrato do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, devem contemplar modelos entre 6.700 toneladas e 8.700 toneladas de deslocamento, de 110 metros a 130 metros, e tripulação de 100 a 115 militares.

Com muitos recursos eletrônicos, serão armados com torpedos de 533 mm, mísseis antiaéreos e Tomahawk, com alcance de 1.300 km, além de serem equipados para dispersar minas pesadas e desembarcar equipes de forças especiais. Os projetos dos grupos General Dynamics e Huntington Ingalls podem incorporar aos sistemas de armas uma versão do míssil antinavio Harpoon com raio de ação no limite de 170 km.

Continua após a publicidade

Os submarinos envolvidos no acordo podem entrar em operação a partir de 2028 se tudo correr bem. "Serão necessários dois anos para cuidar dos contratos, das definições técnicas e da implantação da infraestrutura industrial. Depois disso, talvez mais quatro anos para até a entrega da primeira unidade", disse ao Estadão um engenheiro naval militar. Para o especialista, tudo vai depender da velocidade e da forma como o processo será conduzido pelos Estados Unidos.

O Aukus é um movimento de efeito amplo. Embora os mísseis de hipervelocidade tenham visibilidade maior, o fato concreto é que ninguém sabe o que fazer com eles. Nos testes, até agora, certos protótipos provaram que podem voar e eventualmente cobrir as distâncias pretendidas. Alguns deles erraram o ponto de impacto por 40 km, caso do sofisticado planador nuclear da China, que precisa do apoio de um foguete pesado no lançamento. É muito, mesmo para armas de grande poder de destruição. EUA e Rússia têm sido discretos em comentar resultados de longo prazo.

Submarino HMAS Sheean em porto da Tasmânia, na Austrália; país fechou acordo com EUA para construir embarcações nucleares Foto: Leo Baumgartner/Australian Defence Force via The New York Times

No momento, preocupa mais as potências ocidentais o crescimento da máquina de guerra convencional chinesa. O programa da Marinha, por exemplo, prevê a formação de uma frota de 355 navios de superfície. Destróieres de 6,6 mil toneladas, armados com três ou quatro diferentes tipos de mísseis, canhões de controle eletrônico e torpedos levam um helicóptero embarcado.

Das mesmas linhas de montagem saem fragatas e corvetas. Há também um programa de desenvolvimento de porta-aviões de 65 mil toneladas. Cada um terá uma ala aérea equipada com 40 aeronaves, entre caças supersônico e aviões de controle eletrônico. O ritmo de produção é diferencial. A meta de Pequim é ter a cada quatro anos um novo porta-aviões liderando um Grupo de Batalha de mais quatro navios, entre os quais um submarino, com grande poder de fogo.

Xadrez chinês

Continua após a publicidade

Há poucas informações a respeito da real cadência de produção e do tipo de submersíveis em desenvolvimento na China. A administração de Xi Jinping, entretanto, está fortemente empenhada no jogo de xadrez diplomático. Diante das ações navais ocidentais no eixo Indo-Pacífico e no Mar da China – onde só em 2021 estiveram se exercitando ao mesmo tempo as flotilhas de dois super porta-aviões nucleares americanos, apoiados por navios japoneses, sul coreanos e ingleses – tem respondido com demonstrações de força sobre o território dissidente de Taiwan.

E expandiu a influência em quadrantes distantes – na América Latina, como referência. A chancelaria chinesa mantém cooperação de Defesa com os governos da Venezuela e da Nicarágua. Técnicos militares chineses operam na Argentina uma reservada estação de rastreamento de satélites, instalada na Patagônia.

Todavia, o movimento potencialmente mais sensível é o da aproximação com El Salvador, na América Central. Pequeno, pobre, sem reservas minerais significativas, o país é um parceiro de Pequim. Os presidentes Nayib Bukele e Xi Jinping assinaram tratado bilateral estabelecendo a cooperação tecnológica na agricultura, saneamento, infraestrutura aeroportuária, rodoviária e portuária, sistemas digitais, energia e, discretamente, Defesa.

Na prática, o efeito do documento é a construção de uma arena de futebol, de uma grande biblioteca e da concessão de bolsas de estudos para formação de pesquisadores. A contrapartida veio rápida. O presidente Bukele reconheceu a legitimidade do pleito de Pequim por uma só China e retirou o apoio à dissidente Taiwan.

O valor da fatura, todavia, pode ser maior. Para o analista americano Christopher Hunter, a proximidade de El Salvador com o território dos Estados Unidos pode "colocar em xeque" a posição das administrações em Washington. O pesquisador sustenta que uma instalação militar conjunta sino-salvadorenha dotada de mísseis de médio alcance seria uma ameaça para a sede do Comando Sul do Pentágono, em Doral, na Flórida, e também para bases da Força Aérea em Tampa, no mesmo Estado. O centro de refino de petróleo de Houston, onde estão as quatro maiores reservas do país, seria um alvo.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.