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Mudança mais urgente para polícia dos EUA é a de cultura, diz ex-capitão e prefeito de Apex

Fundador de academia policial que oferece módulos sobre resolução de conflitos, diversidade cultural e policiamento de comunidades vai participar de evento promovido pelo Estadão em parceria com a Embaixada e os Consulados dos EUA

Foto do author Thaís Ferraz
Por Thaís Ferraz
Atualização:

O ano de 2020 foi marcado por duros questionamentos contra a polícia americana, principalmente após a morte de George Floyd, homem negro assassinado por um policial branco que o asfixiou com o joelho durante uma abordagem. Para o capitão aposentado e prefeito de Apex, Carolina do Norte, Jacques Gilbert, a corporação precisa passar por uma mudança radical de cultura.

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Formado na Academia Nacional do FBI, Gilbert trabalhou para o Departamento de Polícia de Apex por 29 anos, e foi capitão de polícia antes de se tornar prefeito e uma voz expoente nas conversas sobre direitos civis nos Estados Unidos.

Em 2017, fundou a Blue Lights College, academia preparatória que oferece a policiais e aspirantes módulos sobre resolução de conflitos, diversidade cultural e policiamento de comunidades. “Nossa ideia é treinar uma nova geração - essa é uma palavra-chave - de policiais que saibam abordar conflitos com compaixão”, afirma.

Gilbert vai participar nesta quinta-feira, 25 de fevereiro, do evento digital Diálogos Brasil-EUA: a questão racial em debate, promovido pelo Estadão em parceria com a Embaixada e os Consulados dos Estados Unidos, um projeto para marcar o Black History Month (Mês da História Negra). Serão dois blocos de discussões, às 10h30 e às 14h30, reunindo especialistas americanos e brasileiros para discutir ações afirmativas e inclusão de pessoas negras no mercado de trabalho.Gilbert participará do primeiro painel, Políticas afirmativas e cotas. O que está em questão? ao lado do economista Helio Santos, fundador do Instituto Brasileiro da Diversidade, e do fundador e reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, José Vicente. 

Manifestantes protestam contra homicídio de George Floyd em Washington, nos Estados Unidos Foto: Alex Wong/Getty Images/AFP

Como surgiu o Blue Lights College e como funciona o treinamento da academia?

Infelizmente, há uma cultura estabelecida em departamentos de polícia, que prioriza a lealdade - mantendo a nossa ‘lavagem de roupa suja’ para nós mesmos, criando uma perspectiva de nós contra eles. Infelizmente, ela muda você. Você vira cínico, tudo é sobre números, sobre quantas prisões você consegue fazer. Nós queremos eliminar isso.

Nossa ideia é treinar uma nova geração - essa é uma palavra chave, nova geração - de policiais que saibam abordar conflitos com compaixão.

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Ao lidar com pessoas, independentemente de classe social ou qualquer outra característica, policiais precisam entender que estão lidando com uma mãe, um pai, um filho. É dessa forma que eles deveriam abordar qualquer chamado. É o modelo que nós tratamos em nossa escola. Temos um módulo de desescalada de conflito, para ser adotado quando se tem decisões difíceis a fazer. Você recebe treinamento de alguém que realmente se importa com as pessoas e que ao mesmo tempo entende de aplicação da lei.

O Blue Lights College foi, para nós, uma oportunidade de recrutar de forma única. O interessante é que quando eu quis lançá-lo, meus subordinados, minha “família” policial, foram contra a ideia. Eles eram contrários porque o Blue Lights era um chamado à comunidade e dizia que não importava como você era, qual era o seu background, nós queríamos que você considerasse se tornar um policial. Era um chamado à ação, “venha ser parte da mudança que você quer ver na comunidade”.

Nos EUA, menos de 17% dos policiais são afro-americanos. Isso levanta questões sobre se deveríamos fazer com que a polícia refletisse nossa comunidade. Então tentamos aumentar esses números, ao envolver mais gente da nossa comunidade. O que o colégio tentava fazer é atrair pessoas não com foco em fazer parte da polícia, mas em fazer parte da mudança. E foi incrível. Muita gente veio sem querer ser policial, mas querendo fazer a mudança. Eles se graduaram em dois anos e agora servem como policiais. Porque viram a partir de uma perspectiva diferente.

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Os protestos do movimento Black Lives Matter mudaram a forma como racismo e polícia são vistos nos EUA?

Eu sou um grande apoiador do Black Lives Matter - e poucos prefeitos diriam isso. É um posicionamento forte, principalmente para um policial aposentado, mas eu acredito na mensagem do Black Lives Matter por uma mudança positiva. O que eu quero dizer com isso é que tem que haver uma mudança, e algumas vezes tem que haver pressão para conseguir a atenção das pessoas, para que elas te ouçam. Não estou falando de violência. Temos membros da comunidade que simplesmente querem mudança e para isso querem trabalhar com todo mundo, até com a polícia. 

O capitão aposentado e prefeito de Apex, Carolina do Norte, Jacques Gilbert Foto: Jacques Gilbert/Arquivo pessoal

Uma das decisões mais controversas que fiz como prefeito foi receber dois membros da comunidade que vieram ao meu escritório para facilitar um protesto pacífico do BLM na cidade. 73% da população de Apex é caucasiana, enquanto cerca de 7% é afro-americana. Era um grande pedido, e eu senti que era necessário. Nós temos que estar confortáveis estando desconfortáveis, é assim que a mudança acontece.

Não só tivemos um protesto pacífico, como a polícia participou dele, e tivemos uma caminhada depois do evento. O que nos mostrou várias coisas: que temos sim preconceito e racismo em nossa cidade. Mas marchar com policiais à minha esquerda, minha família no meio e manifestantes à minha direita foi um símbolo de como podemos não concordar em tudo, mas podemos andar juntos, tentar entender uns aos outros. De que se nos unirmos, podemos conseguir algumas coisas.

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As pessoas que mais resistiram a isso, infelizmente, foram pessoas com quem trabalhei por mais de 20 anos: policiais. Eles estavam tão chateados comigo por essa decisão e minha resposta foi: eu não me arrependo. É o que devemos fazer. Nós devemos assegurar que existam ações em nossas palavras. 

Um slogan muito popular durante as manifestações do ano passado foi “Defund the Police” (um pedido para realocação ou redirecionamento de financiamento da polícia para outras agências governamentais).Como você se posiciona em relação a essa demanda?

Talvez “defund” não seja a palavra certa para usar quando você está tentando trabalhar com outras pessoas. Eu acho que podemos mudar, realocar recursos para certas áreas. Mas precisamos seguir o modelo de resolução de problemas, analisar o que está causando os problemas e consertá-los.

Nós temos que quebrar a tradição, e entender que o que foi permitido que continuasse por tantos anos não pode continuar, porque não está funcionando. Eu sou a favor de mudar as coisas, e se isso significa mover uma fração de dinheiro daqui para lá, desde que seja realocado em nossa cidade, eu não vejo problema. Porque não podemos esperar resultados melhores fazendo as mesmas coisas.

Apex, na Carolina do Norte, teve protesto pacífico do Black Lives Matter Foto: Jacques Gilbert/Arquivo Pessoal

Qual é a mudança mais urgente pela qual a polícia precisa passar hoje? A de cultura. Há um problema com a cultura policial. Eu vejo isso o tempo todo em entrevistas nos EUA. Quando trazem experts, são sempre chefes, executivos. Eu tenho questões sobre isso: essas pessoas são veteranos que estão acostumados a um sistema com o qual conviveram por um período de tempo, 30 anos ou mais.

Eles sempre darão uma perspectiva de que aquilo deve ser assim, porque é o que eles sabem. Se entrevistassem jovens policiais que estão na corporação a menos de dois anos, eles diriam outra coisa. Que entraram em contato com essa cultura, e mesmo que não concordassem com algumas coisas, queriam continuar na polícia, então precisaram se tornar parte disso.

O que estamos fazendo para mudar isso em Apex é trabalhar com um consultor de diversidade que fez uma avaliação da cultura do nosso departamento de polícia. Isso envolveu entrevistar cada membro do departamento. Não em grupos, um a um. E é aí que você encontra as respostas. E o que veio no relatório foi muito perturbador, mas deu uma boa base do que somos agora. Nos mostrou com o que queremos trabalhar, e contra o que trabalharemos. Mas isso exige comprometimento total e desconforto.

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O que Brasil e Estados Unidos têm em comum, em termos de questões raciais, e qual é a importância do diálogo entre esses países? O que eu aprendi em minha breve pesquisa sobre o Brasil é que o racismo está arraigado no país. Há um longo histórico de racismo no Brasil, como nos Estados Unidos. Então acho que sabendo que temos problemas similares, há sempre formas de olhar para o que os outros fazendo, compartilhar o que está funcionando para nós, e convidar para fazer junto. Há uma mensagem poderosa, unificadora, e movimento.

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