Por que líderes da Ucrânia demonstram calma diante da ameaça da Rússia?

Após oito anos de conflito, o país calcula os riscos de uma maneira diferente de Washington. Mas alguns internamente querem mudar essa posição

PUBLICIDADE

Por Michael Schwirtz
Atualização:

KIEV —É fácil ver a concentração de forças da Rússia na fronteira com a Ucrânia. Imagens de satélite mostram tanques cobertos de neve ocupando trechos cada vez mais longos da fronteira, e publicações de russos no TikTok registram a ida ininterrupta de trens para o Oeste, carregando lançadores de mísseis, blindados e soldados.

PUBLICIDADE

Mas, apesar do acúmulo de forças — e mesmo com a advertência dos Estados Unidos de que um ataque pode ocorrer em breve, e as forças da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) em alerta —, o governo da Ucrânia tem minimizado a ameaça russa.

Esse comportamento deixou analistas intrigados, tentando adivinhar a motivação dos líderes ucranianos, Alguns dizem que é manter os mercados do país estáveis, evitar pânico e evitar provocar Moscou, enquanto outros atribuem a calma à aceitação desconfortável de que um possível conflito com a Rússia faz parte da vida cotidiana ucraniana.

Imagem de satélite mostra concentração de tropas russas próximaàfronteira entre Belarus e Ucrânia. Foto: Maxar Technologies via AP

Na terça-feira, a Rússia anunciou uma enxurrada de exercícios militares, do Pacífico ao seu flanco ocidental ao redor da Ucrânia, em uma demonstração do vasto alcance de suas forças.

Mas, enquanto o Kremlin e a aliança militar ocidental se enfrentam, as autoridades ucranianas aparentam um ar de calma. Nesta semana, o ministro da Defesa da Ucrânia afirmou que não houve mudança nas forças russas em comparação com a que havia no primeiro semestre do ano passado; o chefe do Conselho de Segurança Nacional acusou alguns países ocidentais e meios de comunicação de exagerarem o perigo para fins geopolíticos; e um porta-voz do Ministério das Relações Exteriores criticou os Estados Unidos e o Reino Unido por retirarem as famílias dos diplomatas de suas embaixadas em Kiev, dizendo que eles agiram prematuramente.

As declarações desta semana aconteceram depois de um discurso à nação na semana passada do presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, no qual ele perguntou: “O que há de novo? Não é esta a realidade há oito anos?” Na noite de terça-feira, Zelenski criticou a retirada de pessoal das embaixadas, e afirmou em um post no Facebook que isso “não significa que um acirramento do conflito seja inevitável”.

Como interpretar os soldados e equipamentos russos concentrados na fronteira da Ucrânia é assunto de intenso debate. O próprio serviço de Inteligência militar da Ucrânia agora diz que há pelo menos 127 mil soldados na fronteira, significativamente mais do que foram mobilizados pela Rússia na mobilização do início de 2021.

Publicidade

Soldado ucraniano faz patrulha nos arredores de Avdiivka, front do conflito com separatistas pró-Rússia. Foto: EFE/EPA/STANISLAV KOZLIUK

Esse número ainda não inclui os militares e equipamentos que chegam agora à vizinha Belarus, aliada da Rússia, para exercícios militares no próximo mês. Os Estados Unidos dizem que esses exercícios podem ser usados como pretexto para posicionar forças a uma curta distância de Kiev, a capital ucraniana.

Mesmo assim, em uma entrevista na segunda-feira à emissora de televisão ucraniana ICTV, o ministro da Defesa ucraniano, Oleksii Reznikov, parecia se perguntar o motivo de todo o alarido.

“Hoje, neste exato momento, nenhum grupo de ataque das Forças Armadas russas foi estabelecido, o que atesta o fato de que eles não vão invadir amanhã”, disse Reznikov. “É por isso que peço que não espalhem o pânico.”

Há diferentes razões para a diferença entre o que dizem as autoridades ucranianas e americanas. Zelensky precisa ser cuidadoso para transmitir uma mensagem que mantenha a ajuda ocidental chegando, não provoque a Rússia e tranquilize o povo ucraniano.

O presidente ucraniano Volodmir Zelenski visita zona de conflito no leste do país Foto: EFE

PUBLICIDADE

E, depois de oito anos de conflito com separatistas pró-Moscou no Leste do país, os ucranianos simplesmente calculam a ameaça de forma diferente de seus aliados ocidentais. Em 2014, unidades de comando russos anexaram a Península da Crimeia e teve início o confllito com separatistas em duas províncias na fronteira russa.

Nesse conflito, as tropas ficam posicionadas em trincheiras cavadas nos dois lados de uma chamada linha de contato, onde com frequência ocorrem trocas de tiro e de bombas. Mais de 13 mil pessoas morreram no conflito.

“Entendemos os planos e intenções da Rússia. Para nós, não é necessário gritar de medo”, disse Oleksii Danilov, chefe do Conselho de Defesa e Segurança Nacional da Ucrânia, em entrevista à BBC na segunda-feira.

Publicidade

Danilov e outros membros do governo ucraniano argumentam que semear pânico e desordem na sociedade ucraniana faz parte da estratégia russa, tanto quanto qualquer eventual ação militar. Portanto, mostrar medo, mesmo que haja uma base para isso, concederia uma vitória a seus inimigos antes que um único tiro seja disparado.

“A missão número 1 da Rússia é criar confusão na situação interna em nosso país”, disse Danilov. “E hoje, infelizmente, eles estão fazendo isso com sucesso. Nossa tarefa é fazer nosso trabalho em um ambiente calmo e equilibrado.”

Loading...Loading...
Loading...Loading...
Loading...Loading...

Do outro lado, os Estados Unidos têm suas próprias razões para as mensagens veementes sobre o Kremlin. Washington precisa enviar uma mensagem forte tanto a Moscou quanto a aliados na Europa como a Alemanha, que podem hesitar em adotar uma postura dura contra a Rússia, disse Maria Zolkina, analista política da Fundação de Iniciativas Democráticas, um instituto de pesquisa com sede em Kiev.

Mas existe o risco de que o discurso de Washington, que inclui a ameaça de pôr 8.500 soldados em “alerta máximo” para um possível deslocamento para a fronteira Leste da Otan, possa provocar ainda mais o Kremlin, ou pelo menos ser usada para justificar uma postura mais agressiva. Na terça-feira, Dmitri Peskov, porta-voz do Kremlin, disse que Moscou observava os movimentos de tropas da Otan "com profunda preocupação".

Desde que assumiu o cargo há três anos, Zelenski adotou um estilo leve para lidar com Moscou. Isso pareceu render alguns dividendos no início de seu mandato, disse Zolkina. Mas, diante da nova crise, essa tática pode parecer fraca.

“Agora, quando há um cenário real em que a Rússia pode invadir a Ucrânia ou realizar algum tipo de ataque híbrido, essa não é uma boa estratégia para a Ucrânia”, disse ela. “O Ocidente está fazendo negociações que nos deixam de lado.”

Nem todos no país concordam com a política do atual governo. No fim de semana passado, os líderes da fragmentada e barulhenta oposição da Ucrânia pressionaram Zelenski a abandonar os pedidos de calma e preparar o país para a guerra. Membros do Parlamento de diferentes partidos, bem como um ex-presidente, um ex-chanceler e um ex-primeiro-ministro, assinaram um comunicado pedindo a Zelenski para que mobilize as forças da Ucrânia para enfrentar “a ameaça mortal da Rússia que paira sobre o país”.

Publicidade

“Zelensk acredita que, se assustar o povo ucraniano, seu índice de popularidade cairá”, disse Arseniy Yatseniuk, que era o primeiro-ministro da Ucrânia quando a guerra estourou em 2014. “Se a Rússia começar a sua invasão, precisaremos esquecer a política, porque não tenho certeza de que teremos a chance de realizar nossas próximas eleições parlamentares ou presidenciais.”

Os ucranianos estão se preparando, mesmo que os sinais de mobilização não sejam visíveis. Em todo o país, milhares de pessoas se inscreveram para aprender habilidades de combate em aulas ministradas pelo governo ucraniano e grupos paramilitares privados. O objetivo é criar uma força de defensores civis que possa resistir caso os militares ucranianos sejam dizimados em um ataque russo.

Na cidade de Chernihiv — a cerca de duas horas de carro ao norte de Kiev e diretamente no caminho de qualquer avanço russo para a capital — alguns moradores manifestaram esperança de que o governo faça mais para preparar o país para um possível ataque.

“O presidente e seu governo não veem absolutamente nenhuma ameaça. Então, qualquer coisa que possa ser feita para parar Putin terá que vir do Ocidente”, disse Liudmila Sliusarenko, uma professora aposentada de 73 anos. “Mas, se houver um ataque, todo o povo se unirá.”

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.