'Preparem-se', disse vencedora do Nobel da Paz quando Bolsonaro foi eleito; leia a análise

Fui apresentado a Maria Ressa em um evento nos Estados Unidos, pouco depois das eleições de 2018, quando ela apontou as óbvias semelhanças entre o brasileiro e o presidente de seu país

PUBLICIDADE

Por Daniel Bramatti
Atualização:

“Hold the line!” É com esse apelo, que pode ser livremente traduzido como “não recuem, resistam”, que a filipina Maria Ressa costuma se dirigir a seus colegas jornalistas ao discorrer sobre ameaças de líderes autoritários à imprensa. Perseguida pelo presidente Rodrigo Duterte–uma espécie de Bolsonaro filipino –, ela se transformou em símbolo da defesa da liberdade de expressão e foi uma das contempladas com o Prêmio Nobel da Paz de 2021, juntamente com o também jornalista Dmitri Muratov, da Rússia.

O chamado à resistência que Ressa vem fazendo há alguns anos ocorre em um contexto de crescentes ataques a jornalistas e ao jornalismo. No mundo todo, movimentos de tendência antidemocrática têm na imprensa um de seus principais alvos. O jornalismo é atacado por ser visto como um obstáculo a projetos de poder autoritários que não contemplam a pluralidade, os direitos humanos, o respeito às minorias–em suma, que desprezam os valores democráticos.

Maria Ressa é a18ª mulher a ganhar o Prêmio Nobel da Paz em 126 anos. Foto: Rappler/Handout via REUTERS

PUBLICIDADE

Ao associar a defesa do jornalismo à paz e à democracia, o comitê do Nobel evidenciou que, quando profissionais de imprensa são assediados e impedidos de trabalhar livremente, o que está em jogo é algo muito maior. Jornalistas são parte fundamental das barreiras de contenção aos autoritarismos de todos os vieses ideológicos.

Fui apresentado a Maria Ressa em um evento nos Estados Unidos, pouco depois da vitória de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018. “Preparem-se”, disse ela na época, ao apontar as óbvias semelhanças entre o brasileiro e o presidente de seu país. Duterte foi eleito em uma campanha marcada pela desinformação nas redes sociais e com uma plataforma de extrema-direita sem disfarces, que defendia até execuções extrajudiciais–devidamente colocadas em prática durante seu governo.

“Só porque alguém é jornalista não está livre de ser assassinado, se for um filho da puta”, chegou a dizer o filipino em 2016, pouco antes de tomar posse, ao ser questionado sobre as ameaças às atividades da imprensa no país.

Ressa, ao publicar reportagens críticas à chamada “guerra às drogas” de Duterte, que promove o extermínio de usuários e acusados de tráfico, imediatamente se transformou em alvo da máquina de ódio do governo. Em um primeiro momento, o assédio se deu no cenário virtual. As redes sociais – principalmente o Facebook – foram inundadas de ataques misóginos e ameaças de morte contra a repórter.

Mas não parou por aí. O passo seguinte foi o assédio judicial. Ressa foi processada em diversas cortes por calúnia e difamação. Chegou a ser presa e proibida de viajar para o exterior. A avalanche de processos impediu que ela viesse, em 2019, ao congresso internacional da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), no qual participaria como convidada do painel “A imprensa na mira de governos autoritários”, juntamente com jornalistas da Venezuela e da Polônia.

Publicidade

“Hold the line” acabou se transformando no mote de uma campanha internacional em apoio a Maria Ressa, promovida pelas organizações CPJ (Comitê de Proteção a Jornalistas), RSF (Repórteres Sem Fronteira) e ICFJ (Centro Internacional para Jornalistas), entre outras. O Prêmio Nobel é o ponto culminante desse movimento de solidariedade.

“O que faz de Maria Ressa uma pessoa especial não é apenas o fato de ser uma jornalista excepcional, ou seu rigor e tenacidade; é também a sua coragem, bravura e determinação inigualáveis para fazer o que é certo”, disse ao Estadão Claire Wardle, pesquisadora e líder do First Draft, organização internacional que combate e estuda a desinformação nas redes sociais. “Esse Prêmio Nobel mostra que não se trata apenas de conquistas, mas que o importante é como se chega a elas.”

O governo de Rodrigo Duterte nas Filipinas termina no ano que vem. Ele já anunciou que vai se aposentar. Maria Ressa e outros jornalistas, apesar dos percalços, seguem expondo os abusos e atrocidades do presidente. Há três semanas, o Tribunal Penal Internacional, sediado em Haia (Holanda), anunciou a abertura de uma investigação formal sobre crimes cometidos durante a “guerra às drogas”.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.