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Prioridades para restaurar a ordem financeira da Venezuela

Se houver uma mudança de regime, será necessário restaurar o fornecimento de produtos de primeira necessidade, reverter o declínio da produção do petróleo e ativar os dispositivos da rede de proteção

Por Mohamed A. El-Erian e BLOOMBERG
Atualização:

Os blecautes de energia que atingiram a Venezuela no fim de semana foram mais um lembrete de uma situação já trágica que piora dia a dia, levando o país cada vez mais perto da linha que separa um Estado frágil de um falido e em colapso.

À medida que o sofrimento humano aumenta e a situação política fica cada vez mais polarizada, a comunidade internacional parece pronta a apoiar uma transição pacífica da atual presidência, e por uma razão simples: a longa penúria da Venezuela não é só intensa e generalizada, mas vem se espalhando através das fronteiras.

Venezuelanos coletam água do Rio Guaire, um dos mais poluídos do país, em razão do desabastecimento causado pelo apagão que afeta o país há mais de quatro dias Foto: JUAN BARRETO / AFP

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A situação do país foi bem captada pela declaração de David Lipton publicada pelo Financial Times. O primeiro vice-diretor administrativo do Fundo Monetário Internacional (FMI) observou corretamente que “a Venezuela está vivenciando uma situação extremamente complexa, jamais vista. É uma crise de alimentação e nutrição, de hiperinflação, de um câmbio desestabilizado, que fragiliza o capital humano e a capacidade produtiva física, e um problema de endividamento muito complicado”.

A Venezuela é um dos mais difíceis desafios que a comunidade internacional enfrenta para restaurar a ordem financeira, o crescimento econômico e a viabilidade da dívida no longo prazo. Mas, se bem administrado, existe potencial para o país se tornar exemplo do que uma coordenação internacional de iniciativas públicas e privadas pode fazer, por meio de um encadeamento de medidas cuidadoso e criterioso.

Saques afetam a cidade de Maracaibo, no oeste da Venezuela, durante apagão Foto: REUTERS/Issac Urrutia

A crise venezuelana vinha se formando há muitos anos e agora exige a implementação de uma série concentrada de medidas de ajuda econômica e financeira imediatas, seguidas de ações de longo prazo com vistas a uma recuperação, medidas estas que precisam ser respaldadas por uma comunicação confiável e uma coesão sócio-política interna que inexistiu nos últimos anos, juntamente com a coordenação e acordos entre governos, órgãos regionais, instituições multilaterais e credores privados.

Sem isso há poucas esperanças de uma solução dessa longa lista de fracassos em cascata que incluem o colapso quase total das cadeias de abastecimento, uma infraestrutura destruída, a escassez geral de produtos e serviços de primeira necessidade, a hiperinflação, um regime cambial sem uma âncora, um sistema financeiro desestabilizado, calotes financeiros em série e um colapso de instituições que ameaçam a viabilidade do setor petrolífero do país, outrora invejado por muitos.

A recente evolução da situação política interna pode abrir uma possibilidade de mudança do regime que, esperamos, será pacífica e organizada, embora isso não esteja nada assegurado. Esta mudança poderá permitir reverter a enorme tragédia humana. As três principais prioridades no campo da política financeira e econômica devem ser:

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- Restaurar o mais breve e da forma mais ampla possível o fornecimento de produtos e serviços de primeira necessidade, incluindo alimentos e medicamentos.

- Reverter o forte declínio da produção de petróleo e a implosão catastrófica das atividades relacionadas (a menos de 1,5 milhão de barris por dia, a produção está num nível perigosamente baixo jamais visto em meio século e pode causar prejuízo importante para os campos petrolíferos).

- Ativar os dispositivos da rede de proteção para ajudar os segmentos da população mais vulneráveis e que mais sofrem.

Nenhuma destas medidas será possível sem uma importante injeção de ajuda financeira por parte de fontes bilaterais e multilaterais, liderada e coordenada pelos Estados Unidos, juntamente com garantias adequadas da Venezuela de que os recursos não serão usados para pagar seus credores públicos ou privados.

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Um congelamento destes pagamentos será complexo e confuso, mesmo que o foco seja apenas nos credores privados. Embora alguns títulos de dívida do país contenham cláusulas de ação coletiva, o que provavelmente ajudará a limitar as complicações associadas a comportamentos dos credores “abutres” e dos indecisos, outros não.

Diversas ações legais estão sendo impetradas em juízo, incluindo a alegação de supostas expropriações ilegais. E algumas facções insistirão em um tratamento diferenciado da dívida com base na época em que ela foi contraída, e também no caso das obrigações da estatal Petroleos de Venezuela S.A.

Dito isso, a troca de títulos de dívida tem um importante potencial para alterar o tamanho e o perfil das obrigações com o serviço da dívida externa do país – protelando os pagamentos, capitalizando os juros e, por meio do uso de cláusulas de recuperação de valor e análises de sustentabilidade da dívida, tornando os cortes no caso das obrigações pendentes menos difíceis para os credores aceitarem. Uma boa coordenação entre os credores também abrirá espaço para cláusulas especiais com vistas a uma retomada no curto prazo do financiamento para o comércio.

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Quanto à divida a ser paga para governos e entidades governamentais, a questão pode se tornar a maior e mais complicada reestruturação de dívida na história do mercado emergente, que já enfrentou calotes da Argentina e da Rússia, como também uma situação ainda complexa que foi a do Iraque.

O plano imediato de congelar os pagamentos exigirá a cooperação dos governos chinês e russo, que forneceram dinheiro e empréstimos em espécie para o país nos últimos anos. O que vai requerer um nível de transparência e de prestação de contas internacional difícil de garantir, não apenas na Venezuela, mas em outras nações. E a esperança é que ele seja incorporado na estrutura do Clube de Paris, o que vai assegurar um tratamento amplo do caso.

Esta combinação de serviços e produtos de primeira necessidade, aumentos gradativos da produção de petróleo, um melhor funcionamento das redes de proteção social e uma possibilidade de reestruturação da dívida – abriria caminho para uma tarefa ainda mais difícil de recuperar a infraestrutura econômica do país, restaurar os serviços sociais, recuperar as finanças domésticas e o sistema financeiro, colocar o regime cambial e das contas externas numa base menos precária e abrir caminho para um crescimento sustentado e inclusivo.

Não vamos nos enganar: essas medidas imediatas e a subsequente recuperação que a Venezuela necessita urgentemente são monumentais, do ponto de vista analítico e prático. Mas há também razões para sermos relativamente otimistas.

A Venezuela é uma economia bem equipada, abrigando as maiores reservas de petróleo do mundo. Sua população tem um nível de educação e expertise relativamente alto.

Os Estados Unidos já mostraram disposição para ajudar em circunstâncias políticas apropriadas e Washington está bem colocado para liderar um amplo esforço internacional. Existem coalizões regionais e multilaterais que devem colaborar e algumas já começaram a planejar as medidas. E muitos países do hemisfério têm interesse numa recuperação bem-sucedida dos seus vizinhos e parceiros venezuelanos.

Com tudo isso, o país tem potencial para virar a página nesse processo acelerado de declínio social e econômico. Essa reviravolta poderá servir como lembrete de que esforços coordenados em nível internacional ainda têm um lugar importante nesta economia global mais fragmentada dos dias atuais. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

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É COLUNISTA