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The Economist: Suprema Corte dos EUA começa a deliberar sobre caso que pode afetar lei do aborto

Com nova maioria conservadora, Corte poderá dar primeiro disparo contra decisão do caso Roe versus Wade, que legalizou procedimento em alguns casos

Por The Economist
Atualização:

No tocante ao direito constitucional de abortar, Donald Trump prometeu algumas semanas antes da eleição de 2016 que ele desapareceria “automaticamente” durante a sua presidência. “Estou colocando juízes a favor da vida na Corte”, afirmou ele, atormentando evangélicos e outros eleitores que defendem o direito ao aborto. Três anos depois e Trump se vangloria de que dois juízes nomeados para a Suprema Corte, Neil Gorsuch e Brett Kavanaugh, são reticentes com relação à sentença proferida no processo Roe versus Wade, adotada em 1973 e que legalizou o aborto antes de o feto ter condições de sobreviver fora do útero. Em recurso à Suprema Corte apresentado em quatro de março, eles e seus três pares conservadores poderão dar o primeiro disparo contra aquela decisão.

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O recurso oferecido pela June Medical Services, uma clínica de aborto em Shreveport, em Louisiana, contém questões extremamente técnicas. Mas se ela for derrotada em grau de recurso, as consequências serão profundas, encorajando os legisladores contrários ao aborto em vários Estados a aprovar novas leis restringindo o acesso ao procedimento.

Em discussão estará a Unsafe Abortion Protection Act, lei promulgada na Louisiana em 2014 com o objetivo de proteger as mulheres que decidiram abortar. Dois anos depois de ser aprovada, a Suprema Corte anulou uma lei idêntica no Estado vizinho do Texas. Tanto a primeira como a segunda lei determinaram que os médicos e clínicas que realizam abortos devem ter “privilégios de admissão” em hospitais – ou seja, a capacidade de transferir e cuidar de pacientes num hospital a uma distância de no máximo 48 quilômetros das suas clínicas.

Sentença proferida no processo Roe versus Wade legalizou aborto antes de o feto ter condições de sobreviver fora do útero Foto: Mike Theiler/Reuters

Ter esse privilégio é um beco sem saída: os médicos precisam enviar um determinado número de pacientes a um hospital a cada ano para se qualificarem, mas o aborto, sendo um procedimento seguro, raramente exige internação hospitalar. Num aparente desafio ao precedente estabelecido pela Suprema Corte, o Estado da Louisiana alega que a lei aprovada pelo Estado aprimora o escrutínio dos médicos que realizam abortos e corrige “o desrespeito para com os critérios básicos de segurança” por parte das clínicas, “que colocam suas pacientes em risco físico”, garantindo que estejam num local de fácil alcance no caso de uma emergência, se ocorrerem problemas.

Esses alegados benefícios são mero pretexto, afirmam os oponentes da lei, e são mínimos frente ao gravame que coloca para as mulheres da Louisiana que querem abortar. A clínica June Medical contesta que a real motivação dos legisladores foi limitar o acesso ao aborto tornando o procedimento mais difícil para as clínicas que o realizam permanecerem abertas.

Quando o projeto de lei foi apresentado, Katrina Jackson, deputada da Louisiana que foi sua principal patrocinadora, afirmou que a exigência de “privilégios de admissão” salvará “crianças não nascidas e se fundamenta no nosso trabalho passado para proteger a vida em nosso Estado”.

Bobby Jindal, governador do Estado, foi franco.“Promover a cultura da vida na Louisiana é uma prioridade importante. O Unsafe Abortion Protection Act valoriza os seres humanos como criaturas únicas que foram feitas pelo nosso Criador”.

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Quando os médicos que realizam abortos contestaram a lei em 2017, um tribunal federal em Baton Rouge a derrubou. A lei “criará obstáculos substanciais para as mulheres que desejam abortar”, concluiu o juiz, “sem oferecer nenhum benefício comprovado para a saúde ou segurança dessas mulheres”.

Diversos médicos seriam impedidos de realizar abortos, ficando somente um para exercer a função em todo o Estado da Louisiana. E isto “prejudicará a possibilidade de uma mulher abortar na Louisiana, uma vez que "10 mil procedimentos por ano não podem ser arcados por um único provedor de serviços médicos".

Baseado na ação Planned Parenthood versus Casey, em 1992, a decisão da Suprema Corte, em 2016, no processo envolvendo o Whole Woman’s Health contra Hellerstedt, e que anulou a mesma decisão do tribunal de Baton Rouge, no Texas, concluiu que a lei acarretava “um ônus indevido” ao direito de uma mulher que pôr fim à sua gravidez. A escassez de clínicas tornaria o processo de abortar ainda mais perigoso sem nenhum benefício autêntico para a saúde da mulher. O tribunal também concluiu que não existia nenhuma evidência de que a regra de admissão privilegiada ajudaria uma mulher a receber um melhor tratamento”.

Essa rejeição enfática da lei foi revertida num recurso apresentado em 2018. Embora o texto da lei aprovada na Louisiana fosse idêntico ao do Texas, os juízes decidiram que seu impacto sobre o acesso ao procedimento seria “muito menor”; Menos clínicas seriam fechadas, as mulheres não necessitariam viajar longas distâncias para encontrar um médico e “no máximo 30% das mulheres seriam oneradas pela regra. Embora “não imenso”, o benefício da lei em termos de averiguação dos médicos que realizam abortos seria suficiente para compensar as desvantagens.

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Em fevereiro de 2019 o juiz John Roberts aliou-se a seus colegas liberais num voto, de 5 contra quatro, impedindo a entrada em vigor da regra envolvendo privilégios de admissão aprovada na Louisiana, enquanto a questão não fosse analisada pela Suprema Corte, o que abriu espaço para a audiência desta semana que vai se debruçar sobre os aspectos principais da lei sobre o direito ao aborto, ocasião em que o assunto será reavaliado pela primeira vez com os nomeados por Trump compondo a mesa.

A Suprema Corte normalmente se atém a sentenças anteriores. Nos últimos anos, contudo, os magistrados conservadores que formam a maioria se desviaram deste princípio em vários casos notórios. Em 2018, rejeitaram uma decisão anterior sobre financiamento de sindicatos, que se mantinha desde 1977; em 2019 descartaram um precedente de 1979 envolvendo processos interestaduais. Raramente, porém, a Suprema Corte reconsidera uma decisão que foi adotada há pouco tempo. Seria quase impensável para a maioria reconstituída anular uma decisão recente sobre o Whole Woman’s Health.

O presidente da casa, o juiz John Roberts, era um dissidente há quatro anos, mas agora, como guardião da legitimidade da Suprema Corte, ele pode estar relutante em dar aos americanos a impressão de que uma mera mudança de pessoas no tribunal é a chave para reverter direitos constitucionais.

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Assim, embora a ideia de rejeitar o Whole Womans’s Health tenha sido ventilada na petição por escrito do governo aos magistrados, o presidente da Corte, John Roberts, provavelmente tem outros planos. Uma possibilidade seria rejeitar o caso com base em detalhes técnicos. As partes debaterão não apenas o mérito da lei que trabalha de privilégios de admissão, mas se as clínicas de aborto têm o direito de contestar as leis sobre aborto em nome de suas pacientes.

Segundo a Louisiana, não têm. Mas décadas de litígios dizem que sim.

Outro caminho possível para o magistrado Roberts seria se ater ao enfoque da decisão que distinguiu a lei aprovada na Louisiana daquela do Texas, baseado num reexame do quão onerosa seria a regra sobre privilégios de admissão. Embora hipócrita - uma vez que tornará o acesso ao aborto mais oneroso na Louisiana – este enfoque pode prejudicar as proteções do Whole Woman’s Right sem descartá-las explicitamente. Mary Ziegler, historiadora, no seu próximo livro Abortion and the Law in America sublinha que a “lógica no tocante ao Whole Woman’s Health 'dificilmente coloca em salvaguarda os direitos ao aborto'”.

A decisão “deu ao critério de ônus indevido mais força”, mas o teste continua “extraordinariamente vago e subjetivo e torna “cada caso de aborto dependente dos seus próprios fatos específicos”.

Por mais inclinada que esteja a nova maioria conservadora da Suprema Corte a cancelar os direitos ao aborto, qualquer anulação da sentença no caso Roe versus Wade não será numa decisão explosiva para este ano. Pelo contrário, uma derrota do June Medical Services vai inspirar uma série de regulamentos sobre o aborto em Estados conservadores. Desde 2011, os Estados aprovaram 500 leis patrocinadas por proponentes dos direitos de abortar.

O Whole Woman’s Health tem sido analisado por tribunais de primeira instância no sentido de fechamento de muitos das suas clínicas: se a decisão for anulada ou prejudicada, os legisladores contrários ao aborto terão carta branca para as desativarem ou analisar novas possibilidades.

A clínica June Medical Services parece destinada a depender do voto do Juiz Roberts, quando a decisão for tomada em junho. Apesar do seu voto em 2016, ele poderá derrubar a lei promulgada na Louisiana como violação de recente precedente da Suprema Corte. Mas se Roberts se aliar aos quatro colegas à sua direita, a decisão poderá ser o primeiro ataque demolidor contra Roe. / Tradução de Terezinha Martino

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