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Governo britânico fez apelo por voluntários, e ganhou um exército

Mais de 750 mil pessoas se apresentam para ajudar britânicos idosos, dissipando um pouco da discórdia da era do Brexit

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Por Redação
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LONDRES - Semanas atrás, Kate Sellars estava organizando viagens ao melhor estilo James Bond para seus clientes ricos, nas quais eles seriam levados de helicóptero até Monte Carlo para a pré-estreia do último filme do 007, uma festa brilhante com membros do elenco e, para cada convidado, um Aston Martin pronto para acelerar.

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Na semana passada, Sellars levou três sacolas de compras do mercado local para a porta da frente de Garth D'lima, um contador aposentado de 73 anos que está fechado em casa enquanto Londres é arrasada pelo coronavírus.

“É de partir o coração não poder ajudá-lo a carregar as compras escada acima”, disse ela, enquanto acenava para o senhor D'lima do portão da frente. “Não podemos entrar nas casas das pessoas porque isso as colocaria em risco”.

Sellars, cuja agência de viagens de luxo foi paralisada pela pandemia, trocou seu trabalho glamouroso por uma árdua rotina de compras de supermercado e buscas de receitas médicas para idosos em Hampstead, seu arborizado e próspero bairro em Londres. Ela é uma soldada do vasto exército de voluntários que se arregimentou em apenas uma semana, para cuidar das pessoas mais vulneráveis da Grã-Bretanha durante o isolamento social no país.

Mais de 750 mil pessoas se apresentam para ajudar britânicos idosos, dissipando um pouco da discórdia da era do Brexit Foto: NYT

Quando o governo recentemente pediu para 250 mil pessoas ajudarem o Serviço Nacional de Saúde (NHS, na sigla em inglês), mais de 750 mil se inscreveram. O governo se viu obrigado a interromper temporariamente a inscrição de candidatos para que pudesse processar a enxurrada de inscritos. Além do programa nacional, centenas de grupos de ajuda comunitária surgiram em todo o país, registrando dezenas de milhares de voluntários, como Sellars.

Trata-se de uma emocionante demonstração da solidariedade nacional britânica – uma boa notícia em meio à sombria maré de boletins sobre hospitais sobrecarregados, testes insuficientes, aumentos diários no número de mortes e baixas na classe política, com o primeiro-ministro Boris Johnson em terapia intensiva e vários de seus assessores ainda sofrendo após contrair o vírus.

É também um bem-vindo bálsamo depois de três anos e meio de amargas polarizações em torno do Brexit, um debate que rachou o país em termos sociais, culturais e geracionais. Muitos comentadores observaram que o coronavírus é um flagelo igualitário: atinge tanto os que queriam sair da União Europeia quanto os que queriam ficar.

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“Durante o debate sobre o Brexit, as pessoas costumavam dizer que nós precisávamos mesmo era de um inimigo comum – e agora temos”, disse David Goodhart, escritor cujo último livro, The Road to Somewhere (Estrada para algum lugar, em tradução livre), explorou a divisão entre os enraizados e os sem-raízes na sociedade britânica. “A diferença é que este é um inimigo invisível”.

O isolamento, disse Goodhart, expôs as “engrenagens internas e ocultas” de uma sociedade abastada: entregadores, coletores de lixo, balconistas de farmácia e trabalhadores de mercados que mantêm as prateleiras abastecidas. “Descobrimos que os repositores das prateleiras dos supermercados são absolutamente vitais”, disse ele.

De maneira ainda mais dramática, o isolamento revelou a situação dos idosos, que correm o maior risco de sucumbir ao patógeno. Com isso em mente, o governo instou as pessoas com mais de 70 anos a cortar todo e qualquer contato social que não fosse absolutamente necessário por doze semanas, para reduzir o risco de contaminação pelo vírus.

Isso priva até os mais saudáveis de caminhar diariamente até o comércio local. Confinados dentro de casa, muitos não têm ideia de como podem obter comida ou outros suprimentos. Sem conexões de banda larga, alguns não têm contato com amigos nem familiares.

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“O governo disse para 1,5 milhão de pessoas ficar em casa, sem ter ideia de quem elas são ou de como podem se isolar”, disse Connor Rochford, médico e ex-consultor de administração que fundou o Exército de Voluntários de Hampstead com sua parceira, Sarah Dobbie, e outro casal, Kate e Brendan Guy.

“As pessoas estão assustadas e isoladas”, disse. “A autoconfiança funciona só até certo ponto e a ética do ‘Mantenha a calma, siga em frente’ não é o bastante”.

Desde o início, em 14 de março, uma semana antes de o primeiro-ministro Boris Johnson impor o bloqueio nacional, seu grupo já reuniu mais de 600 voluntários. Eles são encaminhados para líderes de equipe, como Sellars, que supervisionam áreas de alguns quarteirões e distribuem as entregas. Até agora, o grupo ajudou 166 pessoas, algumas com solicitações únicas, outras com pedidos permanentes.

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Com pouca orientação do governo, o grupo se viu obrigado a elaborar seus próprios protocolos de segurança. Os voluntários usam máscaras faciais e luvas esterilizadas e mantêm rigorosamente a distância das pessoas que estão ajudando. Eles não podem entrar em suas casas. Os organizadores consultaram especialistas em crise para obter conselhos sobre como lidar com pessoas em circunstâncias particularmente difíceis.

O dinheiro é uma questão complicada: algumas pessoas conseguem ligar com antecedência para as lojas e fornecer as informações do cartão de crédito. Em outros casos, os voluntários pagam as despesas e são reembolsados quando entregam os mantimentos.

Para aposentados como D'lima, que se orgulham de sua independência, não é um esquema fácil. Alguns dias antes, ele estava na fila do lado de fora do supermercado cheio, debaixo de uma tempestade. “Eu moro sozinho, então sempre faço minhas compras”, disse ele. “Mas meu amigo disse que eu não deveria sair de casa”.

Para Sellars, o voluntariado deu sentido a uma vida até então pouco afetada pela pandemia. Ela tem confiança de que sua empresa de viagens voltará. Mas, enquanto isso, ela disse que vem fazendo amizades com pessoas que, de outra forma, seriam meras desconhecidas na calçada. Algumas deixam lembrancinhas na sua porta. Conhecer essas pessoas lhe deu uma nova perspectiva sobre o bairro onde ela nasceu.

“A grande questão é: o que vai acontecer quando tudo isso acabar?”, Sellars perguntou, levantando os olhos para ver os telhados vitorianos de Hampstead.

Aí o celular tocou e ela anotou um pedido para entregar um pacote de sabão a outro náufrago urbano do coronavírus. / Tradução de Renato Prelorentzou

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